Dedos de Prosa III

Samantha Abreu

 

Foto: Almir Bindilatti

 

Pequeno confessionário admiratório

 

Eu escrevo sobre mulheres, pois gosto de imaginá-las majestosas e donas de seus corpos, caminhando em direção a um pôr do sol, sumindo no horizonte dos sonhos.

Acho gentil a poética de seus ventres quando as trompas se transformam em galhos cheios de flores. Existe tanta beleza na anatomia das ancas arredondadas, uma arquitetura sutil dos desníveis.

Admiro a deformação de seus rostos quando sentem; me encanta a euforia de suas vozes e o silêncio de suas dores. São seres que não passam incólumes pela cerca viva e espinhosa da grade de suas próprias costelas.

São jeitos de quem aprendeu sobre os contornos da existência, que enfrentou os desvios necessários das lâminas, que sobreviveu aos abismos diários das pequenas mortes.

Eu escrevo sobre mulheres para descobrir os segredos do mundo.

 

 

 

***

 

 

 

Uma mulher é uma imagem em pé

 

Uma mulher se levanta roçando suas asas nas pernas dos sonhos

e as asas da mulher flamejam e estalam,

as asas chicoteiam quando a mulher se levanta pisando no acolchoamento de nuvens.

Sempre que a mulher se ergue do meio do nada, de dentro do vapor suado que circula o mundo,

sempre que ela se mostra, sempre que a mulher caminha

eu entendo que anjos e demônios usam seu corpo,

que anjos e demônios se irmanam

sob as formas que ela encontrou de encarar o abismo.

 

 

 

***

 

 

 

Meninas que saltam de parapeitos

 

Algumas meninas se debruçam sobre os parapeitos e observam encantadas outras vidinhas e pequenos afetos. Algumas meninas se debruçam sobre as grades e sorriem com os olhos. Depois se recolhem silenciosas para suas modéstias e sobriedades. Algumas meninas se recolhem.

Eu me deito sobre o vento pincelando no ar meus dedos de autoridade sobre o recato. Tenho desejo de gravidade infinita. E me jogo do parapeito das meninas, sorrindo as sobrancelhas e deformando a boca enquanto berro. Berro, mas não paro de cair. Eu desabo estendida em nuvens.

 

 

 

***

 

 

 

Putas

 

Mulheres passam pela rua de todas as horas arrastando os pedaços de seus corpos anteriores, pedaços de suas trompas, suas pontas de astros. Passam altivas carregando o peso de antigos seios de tantas mamadas, braços marcados por unhas e barbas, genitálias explodidas por nãos que foram ditos entre berros, cabelos enozados por coágulos causados por vômitos cuspindo dentes.

Elas caminham juntas, passo a passo, cantando dolorosamente sua elegia da carne viva, enquanto a rua as observa quase vivas e asseguradas por um mandado de segurança: cem metros de distância e maquiagens de alta definição. Uma renovação pela graça de grandes laboratórios dirigidos por homens cientistas.

As boas pessoas que assistem ao cortejo rezam de cabeça baixa pedindo a benção do esquecimento, mas as mulheres seguem ensanguentadas em direção ao espaço reservado aos que pagam penitências e culpas: putas!

 

Samantha Abreu (Londrina/Pr) é professora e poeta, que pesquisa a literatura de autoria feminina pela Universidade Estadual de Londrina. Já foi publicada em antologias e revistas, além de participar de debates, projetos e eventos literários. Lançou “Fantasias para quando vier a chuva” (Orpheu, 2011); “Mulheres sob descontrole” (Atrito Arte, 2015); “A pequena mão da criança morta” (Penalux, 2018); e tem dois livros no prelo. Integra as antologias “O Fio de Ariadne” (Atrito Arte, 2014); “29 de Abril: o verso da violência” (Patuá, 2015); “Um Dedo de Prosa” (Atrito Arte, 2016); e “Sob a pele da língua” (Cintra, 2019). Seus textos foram adaptados para o teatro na montagem “Trouxe a chave para libertar sua tristeza”, da Cia AARPA. Faz parte do Coletivo VERSA, que pesquisa, organiza e divulga a escrita de autoras londrinenses.

 

Clique para imprimir.

1 comentário

  1. A arquitetura heterodoxa da Mítica Feminina, nos textos de Samantha, mais do que balança, derruba o anacronismo das visões lineares que circula nos meios socioculturais como estruturas engessadas do universo uterino. Uma Riqueza!

Comente

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *