Dedos de Prosa III

Marithê Azevedo

 

Desenho: Felipe Stefani

 

Sangue de índio

 

Bento tinha mania de abraçar as árvores. Acordava cedo e antes de ir para a escola corria para a mata perto dali, conversava com uma, conversava com outra. E abraçava, abraço forte mesmo de quem gosta muito da pessoa abraçada.  Com essa mania, a mãe dizia que ele devia era ter sangue de índio. –Índio é que acha que arvore é gente. Tirando a mania, a mãe se orgulhava do menino: inteligente, esperto, afetuoso e com saúde. A professora vivia elogiando o Bento. – Bento vai longe. Quem sabe ele poderia até ser um médico, quando crescesse, pensava a mãe, em silêncio. Um dia, quando Bento já tinha saído para abraçar as arvores, a mãe ouviu ruídos de motosserras vindo da mata. Saiu na porta e viu um monte de caminhões parados em volta das arvores. A mãe fechou a torneira da pia, tirou o avental, tapou o bolo com um pano de prato e foi lá ver o que estava acontecendo. No caminho encontrou outros vizinhos olhando. Quando chegou, várias arvores já tinham sido derrubadas. E havia um grupo de homens em volta de um tronco, jogado na terra, tentando tirar alguma coisa. Quando a mãe se aproximou dos homens, viu o Bento agarrado a um tronco com as pernas e os braços. Tiveram que enterrar o menino com o pedaço de tronco junto.

 

 

 

 

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 Pauzinhos de picolé

 

-Mãe, se você achar pauzinho de picolé na rua, traz pra mim? Pergunta o Luis Antonio, entretido, na varanda, contando os pauzinhos de picolé que já tinha conseguido. Nisso, passa o avião, baixinho, ali perto. -Estão jogando remédio na plantação, vem prá dentro que este é forte, depois vai ficar se coçando aí, diz a mãe. Luis Antonio corre pra dentro com a caixa de pauzinhos de picolé na mão. A mãe olha aquele monte e pergunta: -Pra que, tanto palito de picolé, menino? Eles esperam o avião passar, com portas e janelas trancadas. Quando não se ouve mais o ruído do avião, Luis Antonio pega a caixa com os pauzinhos de picolé e sai de casa. – Vou catá passarinho. Luiz Antonio caminha pelo bairro, olhando debaixo das arvores. Acha um, coloca na caixa, acha outro, coloca na caixa e, assim, enche a caixa. Caminha para um terreno baldio e lá está o Genésio esperando por ele, também com uma caixa na mão. Luiz Antonio corta o palito de picolé no meio e faz uma cruzinha que ele amarra com um pedaço de barbante. Genésio joga as que tem prontas no chão. Luiz Antonio pega uma faca velha e cava uns buraquinhos na terra. Os dois enterram todos os passarinhos, colocam terra por cima e fincam, nos montinhos, as cruzinhas que fizeram. O terreno é bem grande e está lotado de cruzinhas de pauzinhos de picolé.

 

 

 

 

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O biquini estampado

 

Doida para estrear meu biquini estampado com tons de azul e verde, que eu comprei em Caraguá, sai para a praia. No outono, o clima é ameno e aproveitei, então, a brisa gostosa da manhã, com aquele sol mansinho que não arde, mas bronzeia devagarinho a pele. Ah! porque eu estava precisando largar o corpo na areia e me deixar abraçar por aquela água fria que faz sossegar a alma. O mar estava calmo, ondas tranquilas, poucos surfistas. Os primeiros vendedores estão começando a chegar com suas barracas. Achei até que ia ter mais gente, mas, talvez o pessoal esteja aproveitando esta manhã de sábado para dormir mais um pouco. Um grupo de meninas adolescentes brincava tranquilamente na beira da água, rindo e jogando água umas nas outras, quando se ouviu um estrondo. Talvez uma bomba enorme tenha explodido num morro de pedras ali por perto, mas o estranho é que o barulho vinha de dentro do mar que agora estava violento. E como uma boca enorme que ia vomitar, uma onda gigantesca se formou na beira da praia e foi aproximando muito rápido. Sai correndo, descalça, como louca para a calçada, atravessei a rua no meio dos carros que buzinavam intermitentemente e fui parar lá do outro lado. Nem deu tempo de pegar a toalha e o celular. Buzinas e gritos se misturavam num só pânico. Parei do outro lado da rua, ofegante, exausta de tanto correr, mas o cheiro forte de peixe morto me fez olhar para trás. O dia se tornara cinzento e já não era mais possível ver o mar. Um paredão gigantesco, alto como os edifícios deste lado, se formara com pilhas e pilhas de peixes mortos emaranhados a plásticos antigos e desgastados, ocupando toda a orla marítima.

 

 

 

 

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Quase dois metros de altura

 

Estava no consultório do endocrinologista aguardando a minha vez, quando entra na sala de espera, uma senhora baixinha acompanhada de um rapaz de quase dois metros de altura, que abaixou a cabeça para passar na porta.  A mulher, morena, jeito de interiorana, beirando os 50 se sentou perto de mim. Aí percebi que ela não era tão baixa assim como vi de longe, ao lado do rapaz de quase dois metros. O rapaz se sentou ao lado dela e esticou as enormes pernas. -Este vai ser jogador de basquete, hein! comentei. O rapaz olhou para mim e percebi nele um semblante de menino, meio neófito, que ainda não sabe das coisas. Deve ter uns 18 anos, pensei. -Mora onde? a mulher me perguntou, puxando assunto. -Aqui no bairro mesmo, respondi. -Eu vim de longe, lá do Jardim Felicidade, disse ela. Como eu devo ter feito cara de quem não sabia onde era o Jardim Felicidade, ela completou: -aquele bairro onde tem a granja Eldorado. Vim consultar o menino. A mãe dele deixou ele comigo, eu que crio. Sou avó dele. Mas eu quem cuido dele. Agora deu prá crescer, não para mais. – Mas quantos anos ele tem? – Ele tem 10, mas olha o tamanhão. No começo eu achava até bonito ele ficar grande, mas agora estou preocupada. Outra mulher entra no assunto e comenta. – Parece que existem vários casos de crianças, aqui na cidade, com crescimento precoce. Assustada, fiquei imaginando este menino crescendo até os 18 anos. A outra acrescentou: -Teve um caso, de uma menina que menstruou aos 3 meses de idade, porque a mãe comeu muito frango de granja. Hormônio do crescimento rápido, serve pro bicho, serve pra gente também.

 

 

Marithê Azevedo é cineasta, roteirista, doutora em Artes Cênicas pela USP. Propositora de poéticas urbanas. Nasceu em Alfenas, MG. Morou em Brasília, Rio de Janeiro São Paulo e atualmente vive em Cuiabá. Docente do PPGECCO, UFMT. Entre os roteiros de ficção que escreveu para longa, estão: Religare, Três tempos, Cidade Submersa. Entre os roteiros para curta de ficção: Licor de Pequi, Traquitotem, A noite nossa de cada dia. Com o documentário  Memórias Clandestinas, em 2007, recebeu o prêmio de melhor documentário brasileiro no Femina, Festival Internacional de Cinema Feminino.

 

 

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