Dedos de Prosa III

Tiago Chaves

 

Foto: Hermes Polycarpo

 

NO ASFALTO

 

Esse sol na minha cara que queima, que se eu pudesse saía daqui e ia pra sombra esperar. Ai, que eu me mexo e dói, e então é melhor ficar parado, esperando. E olhando assim pro céu vejo agora esses prédios que sobem pela avenida. Que na verdade os prédios estão subindo agora em todos os lugares e todos os espaços, mas é que eu nunca tinha reparado assim, olhando pra cima. Estou sempre olhando pra baixo. E agora aqui parado eu vejo esse tanto de janela que sobe, sobe, e que em cada janela dessas deve ter uma família morando. Será que é uma família feliz?

Ai, que de vez em quando vem uma pontada de dor! Mesmo eu tentando ficar parado, mesmo eu estando calado. Uma dor me futucando. Quando eu respiro fundo acaba incomodando. Vou respirando devagar.

As pessoas ao meu redor vão falando que é pra eu ficar calmo, que vai dá tudo certo. Todos falando, cochichando, com cara de pena pra mim, com celular me filmando. Quantos celulares apontados pra mim. Ai, que dor! Será que vou passar na televisão? Uma moça segura a minha mão, diz que a ambulância já vem.

Eu juro que olhando assim, bem rápido, esse monte de gente perto de mim, bem que parece uma festa, todo mundo conversando, rindo, contando piada, comendo e bebendo, e todos eles me olhando e querendo falar comigo ao mesmo tempo. Eu nunca tive uma festa assim com tanta gente. Se eu fechar os olhos consigo escutar a música.

Tá que dói. Fica difícil de respirar a cada tempinho que passa. Me dá vontade dormir um pouquinho. Estou ficando cansado, mas não pelo tiro que tomei, não pela hora que estou aqui deitado esperando socorro. Estou cansado de muito tempo, desde que tenho que ajudar mainha a comprar comida pra casa, desde que tenho de acordar de madrugada pra trabalhar, desde que tenho que pegar serviço no fim de semana, desde que tomo esculacho de minha mãe, desde que tomo esculacho dos namorados de minha mãe, desde que tomo esculacho do meu chefe, desde que tomo esculacho do cliente playboy, desde que tomo esculacho da polícia. Estou esperando socorro de muito tempo, bem de antes de eu tomar esse tiro, e só agora uma moça segura minha mão e diz que vou ter ajuda. É preciso sangrar pra chamar a atenção de alguém.

Respiro cada vez menos. Respiro cada vez mais forte. Ai, que dor!

Daqui deitado eu vejo os pés das pessoas. Pés tão diferentes uns dos outros. Pé de povo. De tantas maneiras calçados, mas vejo também uns pés descalços, uns pés machucados. Dá pra ver que alguns são de meninos, daqueles pés pequenos que correm com força, pisando direto no chão.  Uns pés agitados.

Daqui deitado eu vejo o chão, as pedras e as sujeiras. Já não consigo olhar pra cima, de tão cansado, de tanta dor. Aqui também tem muita história. Olha pra isso! Tem a calçada, a rua, os carros passando, as lojas abertas. Tenho vontade de mostrar isso tudo que estou vendo agora, só agora em minha vida. As lojas vendem roupas, vendem coisas de casa, vendem livros. Vejo também sangue no chão, que já é muito. Um vermelho manchando o asfalto, uma lama. Uma onda que invade, avança e as pessoas vão se afastando. Ninguém quer se sujar. Eu sou uma ilha. Pedaço de terra cercada por mar.

Ai, já não sinto tanta dor. Apenas uma vontade de dormir.

A moça ainda segura minha mão, ainda diz que a ambulância vai chegar. Tem outras pessoas também e elas falam coisas. Já não consigo entender o que elas dizem. Só vou me lembrando do momento que eu estava parado, olhando na loja uma cuscuzeira pra comprar. Gosto de comer cuscuz de manhã. Estava saindo da loja e ouvi um estouro de bala, as pessoas correndo desesperadas. Senti um ardido forte nas costas e vi homens correndo com armas nas mãos. Foi uma bala perdida que me encontrou. Sou um corpo caído e vi um dos homens com arma na mão ficar parado me olhando, parecendo que vem falar comigo, com cara de preocupado. Mas o homem foge, correndo pela avenida.

Olho bem pra moça, que ainda segura minha mão. Não consigo mais entender o que ela diz. Queria dizer pra ela que ela é bem bonita. A gente podia se casar e ela ia fazer cuscuz pra mim todos os dias de manhã. Não sai mais voz.

Não sinto mais dor. Estou com um pouco de medo. Estou cansado. Aperto a mão da moça.

Vou tentar falar com ela que não consigo mais deixar os olhos abertos. Vou descansar um pouco. Queria pedir a ela pra avisar a mainha que vai ficar tudo bem. Que a ambulância vai chegar e eu vou pro hospital.

Acho que não consigo esperar mais, desculpa.

 

 

Tiago Chaves é formado pela Universidade Católica do Salvador em Letras Vernáculas e Literatura da Língua Portuguesa. Ministrou aulas de gramática e literatura em escolas públicas e particulares. Ingressou no Grupo Teatral Oco Teatro Laboratório em 2007 e fez curso extensão de Análise de Espetáculos Teatrais pela UFBA. Apresentou e ministrou oficinas de teatro em alguns países e, também, em diversos estados do Brasil. Trabalhou como assistente de produção no Festival Latino-Americano de Teatro da Bahia de 2008 a 2011. 

 

 

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