Dedos de Prosa III

Alê Motta

 

Ilustração: Ana Luiza Tavares

 

Bagagens

 

Fiz doze cirurgias ao longo da vida. Ando com auxílio de uma bengala. Uso bombinha de asma, tomo onze comprimidos por dia e gotinhas de própolis, porque me acostumei com elas, quando tive uma gripe no verão.

Depois das seis da tarde coloco um casaquinho, mesmo que não esteja frio. Tenho sempre um guarda-chuva na bolsa. Sou aquela velhinha que a família inteira acha que vai morrer todo ano. Uma chatice completa. Cansei.

 

De uns tempos para cá resolvi ousar. Só coloco goiabada, sorvete e biscoito de chocolate no meu carrinho de compras. Fiz uma tatuagem no braço direito. Uma flor pequenina. Meus filhos quase surtaram.

Troquei de manicure e agora pinto minhas unhas com cores divertidas, tons azuis, verdes e alaranjados. Não quero que olhem para minha bengala, quero que olhem para o meu visual. Todo sábado de noite durmo com bobes, para no culto do domingo de manhã meu cabelo amanhecer estiloso.

Faço depilação, limpeza de pele e massoterapia.

Tenho mimado meus netinhos além da conta e constantemente ignoro meus filhos, quando me mandam fazer exames ou voltar a algum dos meus muitos médicos.

 

Sim, estou cheia de manias e esquisitices novas. Hoje mesmo estou na praia. Fazendo topless. Uma novidade na minha vida. Nunca tinha feito. Tenho oitenta e cinco anos, era hora de testar. Meus peitos estão muito caídos e estou causando um certo mau estar na rapaziada. Mas eu vou ficar por aqui, curtindo esse sol gostoso nos meus peitos por muitas horas. Trouxe até uma bolsa com lanche. Tem goiabada e biscoito de chocolate.

O sorvete compro depois, com o moreno lindo que passa vendendo toda hora.

 

 

 

***

 

 

 

Esquecimentos

 

Esqueci o que fui fazer no quintal. Tenho esses momentos de esquecimento, todos os dias.

Vou para a cozinha e não faço ideia do que ia fazer com a peneira grande e a colher de pau que tenho nas mãos. Saio para a rua e constato que não sei o meu destino.

 

Esqueci de tomar banho algumas vezes, no mês passado. Ou talvez não tenha esquecido. Não posso afirmar.

Tem alguma coisa acontecendo comigo. Desconfio que seja deficiência de vitaminas. O problema é não lembrar o quanto já tomei, quando tomei, para que finalidade tomei. Fico tensa desde o momento em que acordo, até a hora em que me deito para dormir. Todos os dias são assombros, espantos.

 

Ontem fui parar no meio da rua. Uma caminhonete prata buzinou e eu saltitei para a calçada. Tive que abraçar um poste, porque fiquei tonta.

Hoje acordei e o dia está lindo, um céu azul maravilhoso, trinta graus. É meu aniversário de sessenta e cinco anos. Fiz tapioca para o café da manhã.

 

Um, dois, três… Dezessete pessoas aqui na minha casa.

Toda família está na minha sala e na minha cozinha.

O relógio da parede marca 19:25h.

Trouxeram bolo, risadas e salgadinhos.

Não lembro nada do que aconteceu desde o café da manhã. Olho para a bancada e não há indícios da frigideira e da tapioca. Todos conversam, tem música tocando. Meu ombro esquerdo está dolorido de tanto tapinha de Eeee, parabéns!, estou comendo uma coxinha deliciosa, rodeada de netos lindos.

 

Devo ter uma doença terminal. Nunca fizeram uma festa assim para mim – com toda a família. Se fizeram, não lembro.

 

 

 

***

 

 

 

Herança

 

Meu avô é um velho inconveniente que faz todas as perguntas que não devia fazer nos eventos familiares.

Além de fazer perguntas medonhas, ele me encara e comenta que eu engordei, afirma que minha amiga é sapatão, que eu nunca vou arrumar emprego com o curso que faço na universidade, mas tudo bem, porque sou um fracassado igual ao meu pai e fala isso dando aquela risadinha sarcástica de quem está determinado a se meter.

Meu avô consegue azedar qualquer reunião familiar. Ele começa discussão, ofende. Zomba, magoa. A todos.

 

Ele tem olhinhos azuis, cabelo todo branquinho, é gorducho e caminha pulando. Quem olha de longe vê um velho fofo. Quem convive de perto está louco pra ir ao seu funeral.

Ele maltrata a vovó. Chama de lesada, define as roupas que ela deve usar e onde pode ir. Se e quando pode ir. E com quem. Joga o prato no chão se a comida não está do jeito que ele quer. Ela não reage.

Ele espancava os filhos quando pequenos – meu pai e meus tios. E agora que os filhos estão adultos, sempre se dirige a eles com sarcasmos ou palavrões.

Ele nunca nos abraçou. Me chama de Breno e meu nome é Bruno. A Carla ele apelidou de Saco de Banha!, ela é a minha prima complicada com o controle do peso. Já tentou se matar, é depressiva. Minha tia fica arrasada. Meus primos gêmeos ele chama de “os dois” e outro primo, o Gil, de “o menino”. A minha prima Cássia, eita!, essa ele ignora. Tem tatuagens e piercings, para ele não existe. Ela diz – Olá, avô! Ele vira a cara.

 

Estamos na delegacia. Meus pais, tios, tias, primos, primas e vovó. Depois desse ridículo e desprezível almoço de natal. Vovó é a única que chora e repete Tadinho, tadinho.

Meu avô nunca mais escarnecerá de ninguém. Foi esfaqueado, enquanto dormia, após o almoço, com a faca nova de cortar o peru. Durante o almoço ele ofendeu, zombou e xingou a todos.

Impressionante sua capacidade de humilhar, menosprezar e detonar. Meu avô era brilhante na maldade.

 

Somos muitos e somos todos suspeitos, mas o delegado já ganhou uma graninha e semana que vem todos ficarão sabendo da tentativa frustrada de assalto. E co mentarão, impressionados, da valentia do meu avô, que sozinho no quarto, reagiu. O resultado final foi que, infelizmente, ele não resistiu aos ferimentos na luta feroz, corpo a corpo com o marginal.

A vida seguirá. E a maldade da minha família, que era só do velho, agora está em todos nós.

 

 

 

***

 

 

 

Visitas

 

Quando ele chegou – depois de cinco anos sem dar notícias – ficou puxando as flores do arranjo cafona da mesinha de centro da sala e fazendo comentários imbecis do último jogo do Flamengo. Eu sabia que era enrolação.

 

Tenho setenta e oito anos, mas a força de um garoto. Meu soco é brutal. Faço longas caminhadas e cavalgo todos os dias, com muita facilidade.

Quando eu ouvi o

Tio, esse sítio é um fim de mundo. A oferta é ótima, eu tô sem grana. Quero adiantar o que vai acontecer mesmo, quando o senhor morrer!,

Não aguentei.

 

Retirei e recoloquei no lugar todos os quadros, os cinzeiros, a folhinha da farmácia, as duas almofadas que estão puídas e perdendo o enchimento. Passei o pano úmido em tudo, várias vezes.

Toda a madeira da sala está precisando ser envernizada. Amanhã vou à cidade comprar verniz fosco e aromatizador. Hoje não dá tempo. Preciso enterrar, bem escondido, o corpo desse sobrinho insolente.

 

 

Alê Motta nasceu em São Fidélis, interior do estado do Rio de Janeiro. É arquiteta formada pela UFRJ. Participou da antologia “14 novos autores brasileiros!, organizada pela escritora Adriana Lisboa. É autora de “Interrompidos” (Editora Reformatório, 2017) e “Velhos”  (Editora Reformatório, 2020). 

 

 

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