Dedos de Prosa III

Wilfredo Lessa Jr.

 

Foto: Ricardo Stuckert

 

Futuro do Pretérito

 

Primeiro ia tirar os sapatos. Perderia o medo dos pés sujos e entraria mata adentro, se despojando das roupas até estar nu. Enfrentado o terror da escuridão, o frio, os mosquitos, cobras e o que mais habitara sua insegurança infantil. Seguraria na Jurema, na fé antiga, e ia aprender a se perder de vez.

Viria tarde pra casa, cansado e com fome. Ansioso pelo banho e fazendo as contas pra fechar o mês e poder ir tomar umas caipirinhas na praia, dormir até tarde e lembrar qual a valia daquilo tudo. Entraria no apartamento com um sorriso, contaria uma história e colocaria as mãos nas costas dela, sentindo o cheiro do sono vindouro.

Acenderia a luz da sala. Sentaria na poltrona carrancudo. Três da manhã e ele não atendeu o celular uma única vez. Já teriam conversado longamente sobre ele. Assumiria a responsabilidade dessa vez. Não queria gritos. Queria encarar o idiota olho no olho e saber se estava bem e se tinha comido. Colocaria a sobra de almoço no prato e dentro do microondas.

Compraria seus próprios remédios. Sangue derramando no chão seria muito assustador pra ela. A cena teria de ser de sono. As despedidas e pedidos de desculpas teriam de estar escritos. Toda a operação iria se realizar de forma simples. O momento de ir tão longe quanto necessário pra escapar de si. Imaginaria o reencontro com ele e ia ter certeza que iam faltar dados e o livro do mestre, mas sempre valia mais ter um bom cenário. Teria vários planejados.

Sairia na rua sem avisar. Desligaria o celular. Andaria por horas sem rumo.

 

 

***

 

 

Coleiras

 

Fazia sol na praça. Poucas nuvens no céu, crianças correndo e gritando. Pipoca, algodão doce e aquela quentura gostosa, abrandada pelas folhas das amendoeiras que moravam ali.

Isolda detestava e amava tudo aquilo. Desprezava os guris e suas brincadeiras idiotas, mas amava o efeito que causava neles. Os olhos assustados, o modo como abriam espaço, a sensação de poder mudar o aspecto da praça inteira com sua simples presença. Dela e de Tião.

Dalila era uma linda! Alegre, brincalhona e boba. Só causava medo pelo tamanho. Era uma Fila brasileira imensa… a alegria da fazenda São Ciro. Depois do assalto, veio o medo, veio Conde, o Mastim Napolitano. Grande, severo e bem treinado. Não fez questão de ser mimado ou brincar. Seu trabalho era outro. Dalila tentou mas não conseguiu nada além da cruza. Conde era mesmo europeu.

A ninhada era apenas de três filhotes: duas fêmeas cinzentas (Loli e Poly) e um macho de pêlo negro e cara enrugada. Isolda tinha acabado de debutar seus quinze anos e vovô achou que era melhor dar um cachorro, que era de graça, do que um celular.

Isolda olhou para os cães com um desdém completo. Eram fofos, mas preferia tê-los como brinquedos da fazenda do que se encarregar dos cuidados, xixis e cocôs. Sua mãe ia encher pra que fosse ela, e não Neide, que fosse responsável pelo bicho. Ponderava a desculpa ideal pra se manter nas graças de vóvis e conseguir ao menos metade das parcelas do iPhone, que dinda cobriria o resto. Foi quando percebeu que Tião rosnava para as irmãs. Pegou ele no colo e foi amor derramando no chão.

Isolda treinou Tião com afinco naqueles três anos. Na disciplina cruel que só uma adolescente é capaz. Carinhos imensos e punições geladas. Era como se Tião tivesse de agradar duas donas diferentes, mas que cheiravam do mesmo jeito. Tião se tornou assustador, feroz e tenso. O corpanzil parecia ainda maior com a pelagem e os dentes brancos que brotavam da boca negra eram saídos de um conto de lobisomem.

Nem a mãe, nem o pai e nem Neide eram capazes de cuidar de Tião, mas era Isolda chegar e Tião se derretia em pulos e rosnados. Isolda permitia exatamente vinte segundos de afagos. No olhar, num simples olhar, Tião ficava teso. Estático e firme, sentado nas patas traseiras, olhando em súplica. Babando e esperando.

Tião ouvia os passos dela pela sala. Já havia compreendido todo o ritual. Podia sentir o cheiro dela mesmo do quintal. Ela tomaria banho e sairia com a coleira na mão. Era uma peça de couro firme, grossa e com três fechos de metal prateado e polido. Ligado a ela, uma corrente fina mas muito sólida. Não importava o quanto fosse difícil, tinha de se conter e esperar que ela prendesse a coleira no seu pescoço. Toda aquela ânsia de latir, morder e correr precisava ficar presa até a praça.

Isolda segura Tião com pulso firme. Sabe que ele jamais se afastaria dela pra morder ninguém. Mas eles não sabem, e é uma delícia. Tião rosna e ruge. Suas ameaças estrondam pela praça e todos os olhos estão em Isolda. Vestido florido, cabelo de presilha e óculos de menina estudiosa. Um contraste adorável. Tão adorável quanto a ausência da calcinha.

Isolda tinha mesmo algum poder.

 

Wilfredo Lessa Jr. é professor de inglês que nunca morou fora, músico que não toca instrumento e intelectual que não se formou. Diz ele. Membro inativo do P3 (projeto 3), Infected Minds e Irmandade Arcana. Também se finge de escritor para poder falar de livro com gente que é.

 

 

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