Janela Poética VI

Adriana Linhares

 

Foto: Cristiano Xavier

 

Haverá um tempo de linhas imprecisas
onde não importa o princípio e a saída
e tudo se arranjará tão bem
como num embrulho de quereres
amplo e desorganizadamente eficaz.
O outro será descomplicado como você
qualquer outro será o seu amor
como num bloco de carnaval
sem interrupções

 

 

 

***

 

 

 

Uma vez que pretendeu encontrar sentidos
passou a se esgueirar ao sol
sem pressa, pouca ânsia
horas desmarcadas
terreno, terreira
trinta e tantas luas novas.
Uma vez que não desviou veredas
foi levada avalanche
vendo, absorvendo, umedecendo
resrespirando
grão de areia e pétala
queda d’água sem método.

 

 

 

***

 

 

 

Subterrâneo

 

as minúcias que sua cidade vomitava, a deixava de boca aberta
é talvez um acerto não ter postura ereta
diante da síndrome dos mais vendidos clássicos,
da argamassa de história que chapisca os prédios de mais de 200 anos,
diante das formas de vida que transitam atônitas,
em correrias irrecuperáveis
ela ainda se admirava de ter terra em que gostasse de pisar

para não atropelar a si mesma escrevia:

– busque compreender o crescimento do manjericão
– beba licor a cada vez que o cachorro do vizinho de solidão chorar
– entenda que a entrega é a fisiologia do presente

despejar anotações nos olhos era como ter um santuário nas mãos

na cidade que late nervos e bengalas, o subterrâneo também é sustento

 

 

 

***

 

 

 

adormecer como fuga da monotonia agreste dos súbitos enganos
o repouso das ansiedades encardidas, dos despreparos de ser e estar

incumbir-se do real era algo escorregadio como fruta que ao cair se mistura no solfejo dos insetos
ampliar-se no real era como diluir-se em si mesmo
paisagem de tropeço e pequenas glórias trêmulas

aranhas fazem trilhas sobre a sacada
há quem ache desnecessário reparar nelas
no entanto elas arrancam minha atenção em confraria
mostrando que a vida miúda também hipnotiza

há algo dentro que ainda não sei definir ou nunca saberia
algo que às vezes ouso perfurar
que às vezes precisaria dizer a mim mesma mas esqueço pois tenho aquela compra do mês pra fazer

autoqueixa translúcida
organismo penitente e selvagem
gama de enigma que não cessa
que não sabe converter brevidades
e pôr em punho disfunções

quem haverá de me tecer ou o quê?
o que há de regular ou revirar?
não caibo nesses dias letivos repletos de filtros

 

 

 

***

 

 

 

aglomerava seus segredos ao relento
eles às vezes entupiam sua espinha
silêncios substanciais
ancorados na couraça da ausência

se sentia só quando escutava os sons de jogos na antessala da memória
quando anunciavam seu nome completo pra participar de algo
e no exato momento que terminava a música do Milton,
sentia uma solidão tão alucinada
como se nada mais concedesse respiro
apenas os trechos extensos e sacanas dos poetas beatniks
o jeito rústico de quando a lua se alinhava com sua vênus no mapa astral
ou a maneira agridoce que aquela confidência atravessava certeira sua procissão de pensamentos

parecia que nada mais merecia castigo do que esses tempos em que as pessoas não se enviam mais cartas

 

 

 

***

 

 

 

A vida reconciliada
potencialmente desvairada
às vezes no banco de trás
explodida nossa
lançada sem disfarce
no subúrbio dos ímpetos
desmemoriada e fatal
sequestrada do rebanho
contrariada no afeto
organizada sem autoridade
ofuscada com detalhes

A vida exatamente não literal

 

Adriana Linhares nasceu no Rio de Janeiro em 1982. É poeta, arte-educadora e mãe da Selena. Publica seu primeiro livro de poesias “Atrás do não-dito” em 2019 pela Fólio digital e participa da organização de saraus e do editorial do Fanzine Poesia Espiral desde 2005. Atualmente é mestranda no Programa de Pós-graduação em artes na UERJ.

 

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1 comentário

  1. Lindeza!

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