Dedos de Prosa III

Adriano B. Espíndola Santos

 

Ilustração: Marjorie Duarte

 

Coleção de veredas; e nenhuma razão

 

Pior do que não falar nada foi a molície do corpo-indiferença de Laís. Não sendo afeita às palavras, algo natural à sua personalidade estrita, eram comuns, no entanto, uns lances de rabugem, de reclamações. Naquele dia, simplesmente saiu pela porta da sala, depois do estrago.

Era agosto ainda; um mês para o meu aniversário. Ela sabia, desde que éramos crianças birrentas, que esperava ansiosa; que teria mil planos, para fazer, continuamente, a melhor festa de todos os tempos – a cada ano, me impregnava com a ideia de que deveria superar a anterior, e, quase sempre, conseguia.

Ela guardava, de início, uma inexplicável rejeição a mim, porque, pelo que percebia, eu seria a causadora da separação de nossos pais; da mudança repentina de vida, para pior; praticamente a razão da inércia de meus pais, que, logo após a dissensão, se esqueceram de nós, assumindo, como diziam, “cada qual os seus problemas”. E não admitiam interferências exteriores, o que complicava a situação, para o espanto de minha avó Maria, que nos amava muito. Alegavam, vagos, que precisavam se estabilizar e despachar – ou apagar – o passado; e isso inclui não estarem presentes, não participarem das festinhas de colégio e não dedicarem míseros instantes para nos resgatar da tristeza que, pouco a pouco, nos abocanhava.

Ainda que morássemos com minha mãe, vivíamos sem qualquer regulação; o que não era bom. Para os nossos amiguinhos da escola, seria um sonho, viver livre, sem um pai ou uma mãe superprotetora a tiracolo. Mas não – posso confirmar, e era difícil de explicar –, a suposta liberdade, para quem não compreende a vida, é uma armadilha voraz; falo isso por experiência própria – presenciei pelejas de minha irmã, para se desvencilhar de um canalha, um garoto mais velho, que queria possuí-la. Eu mesma cortei, com um canivete, todos os tendões dos dedos de sua mão direita, e o safado saiu com os farrapos dependurados, qual um carniça desossada, se esvaindo em sangue. Aprendemos, na marra, a nos defender, com os instintos apurados, à flor da pele, que poderiam, facilmente, eliminar um agressor.

A questão também morava no campo da competição. Mãe queria mostrar ser superior, e incluía, em sua obstinação cega, arranjar um namorado novo e bonito, e ostentar invejável independência financeira. Pai, que era do tipo esbanjador, por natureza, acumulava dívidas, na mesma proporção – só ficamos sabendo anos depois, pelo motivo da debandada para outro estado, se escondendo das buscas judiciais, que, de certa forma, nos enleava também, com as cobranças chegando ao nosso endereço de origem, as quais não suportávamos; e, por isso, abríamos as cartas, uma por uma – o montante poderia superar o valor de três apartamentos bons, num bairro nobre da cidade.

Assim sobrevivemos até os dezessete anos, qual irmãs siamesas, com personalidades diferentes, é claro; mas irmanadas, confiantes, uma na outra, somente. Foi que mais uma divisão aconteceu: prestes a completar dezoito anos, mamãe, com o seu novo namorado – com o qual se perdera e, cega, se achava amada –, numa espécie de reunião familiar, que nunca tivemos, por sinal, declarou que não poderíamos permanecer ali, já que pretendia formar uma nova família. Significou o choque total, apesar de já intuirmos que, mais cedo ou mais tarde, iria preparar uma dessas.

O que nos salvou, mesmo com tudo, foi o amor de minha avó Maria, que aí nos acolheu, sem pestanejar. Mãe, sendo sua ex-nora – e dizem que não existe ex-sogra –, rareava nas ajudas com alimentação e bens de primeira necessidade, alegando que: “Estão bem grandinhas… E não vou botar comida, sustentar sozinha as duas, coisa que o pai de vocês nunca fez!”, e se carregava em raivas passadas e conversas hostis, como se fôssemos inimigas. Por isso, vovó não compactuava com a ideia de termos de suplicar por qualquer coisa aos “pais desnaturados”: “Vamos nos virar com isso aqui” – e apontava para a geladeira, da qual se vislumbrava nada mais que água, frutas, arroz para a semana; cuscuz e um bocado de verdura. “Pelo menos não precisamos nos humilhar pra seu ninguém…”, concluía.

Não demorou, como esperado, e mãe conheceu o desprazer de se dar a um negócio arranjado; a um “casamento” de aparências; e, sendo enganada mais uma vez, quis meramente nos pegar de volta. Laís foi mais enérgica, fincou o pé e disse que não era molambo, para ser jogada de um lado para outro; que estávamos “bem grandinhas”; que, ainda que ficássemos no limite entre a simplicidade e a miséria, nos virávamos muito bem, obrigada. Mãe nunca mais deu as caras.

Claro, me assustei com o arrependimento de minha mãe, assim, nevrálgico, e, de pronto, com o reproche de Laís. As duas saíram de ponta, magoadas; compreensível, visto que possuíam personalidades semelhantes. Fiquei mais ainda grudada à minha avó, com medo das prementes mudanças e instabilidades. Vó nos acalentou, como meninas pequenas; como fizera nos tempos remotos, superando a barreira que era a sisudez de Laís. Ela se desmanchava toda, sem dar o braço a torcer, quando vó a afagava; bonito de se ver. E eu ganhava, nesses atos naturais, uma piscadela e um sorriso de vó, como se dissesse: “Tá vendo… Consegui domar a fera”.

Não me esqueço de que, nesse mesmo ano de 2011, vó me presenteou com um celular Nokia novinho e com uma festinha modesta, que programou com minhas amigas. Foi um momento mágico, de plena satisfação; esquecemos as dores, os problemas, as contas atrasadas e renegociadas a perder de vista; estávamos engajadas a sermos uma legítima família.

Começamos a trabalhar. Laís como secretária de uma firma de contabilidade, e eu como atendente de uma grande loja de departamento. Nossas vidas mudaram, agora para melhor. As esperanças eram vivas e palpáveis; podíamos comprar roupas, comidas variadas, iogurtes e biscoitos, e honrar as contas da vó Maria. Engraçado é que ela nunca nos cobrou trabalhar, ainda que estivesse abafada pelas pressões financeiras; dizia que, se estudássemos, estava de bom tamanho. Fato é que nunca deixamos de trabalhar e estudar. Terminamos, com um certo atraso, o terceiro ano e logo emendamos nos cursinhos oferecidos pela rede pública.

Laís foi a primeira a passar no vestibular, para Comunicação Social – pode ser ignorância minha, mas não entendi essa pretensão, nem a censurei, sabendo que era de poucas palavras. Um ano depois foi a minha vez, em secretariado, numa faculdade pública.

Nossas vidas corriam bem, embora atulhadas de serviços. Não nos entregávamos. Sempre fomos fortes e atrevidas. Contudo, ambas na metade das respectivas faculdades, fomos surpreendidas com a doença avassaladora de vó, um câncer na região abdominal. Em menos de oito meses, a internação, o coma e a morte.

Isso, sim, nos arrebentou; dilacerou os planos traçados, que seriam de dar um fim de vida tranquilo a vó. Para não termos de pedir ajuda, trancamos as faculdades e continuamos a trabalhar. Eu tive mais sorte, porque, sabendo da morte de vó/mamãe, meu chefe me liberou por um mês; na verdade, antecipou minhas férias. Laís ia arrastada ao trabalho, sem conseguir comer; em tempo de sofrer um revés. Eu mesma preparava sua marmita, para que tivesse apenas de comer; mas, em regra, voltava remexida, quase nada consumido.

Ficamos, sem qualquer perturbação, por dois anos na casa de vó, até que o homem que nos gerou, mancomunado com um tio, boa bisca, irrompeu a morada sagrada para nos despejar, com um mandado judicial forjado, decerto, porque era desse tipinho malandro, criminoso; e, para evitar uma premente morte, contendo os ânimos de Laís, lutei para rebocá-la para um quarto e sala; uma locação que fiz às pressas, para não pararmos nas incertas estrias das ruas.

Laís decretou que sairia com um mês, e queria saber qual seria o homem capaz de tirá-la antes disso. Alcançavam seus arroubos de que a vingança, preparada por ela, seria um prato para se comer quente, fervendo; que esperassem.

 

***

 

Acordei, no malsinado dia, atordoada com a quebradeira. Laís estava determinada a arrebentar das janelas aos azulejos do banheiro. Assim o fez. Nenhuma alma mais viveria ali, conforme declarou com os olhos. Não consegui contornar nada. Estava atordoada, além do mais, com os acontecimentos presentes, tresloucados.

Recuperei alguns pertences, algo que poderia compor a nova morada. Mas, também acometida de ódio visceral, desmanchei o que, quiçá, tivesse serventia.

Laís saiu, colérica, se desatando de minhas mãos suplicantes, com uma mala de mão. Não deixou carta, nem sinal de fumaça. Liguei para amigas e familiares que podiam ter algum resquício de contato, e nada.

Sofro desmesuradamente porque, a essa altura, não sei se está viva, se tem um lugar para dormir; se está perambulando por veredas errantes. Não sei se se entregou à perdição, às drogas. São conjecturas que me atormentam.

Não vale, para mim, ter esse teto sem ela. Agora sou eu quem provo os traços da loucura e do completo abandono. Queria apenas passar meu último aniversário ao seu lado.

 

Adriano B. Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; e em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, ambos pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em diversas revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.

 

 

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