Dedos de Prosa III

Ianê Mello

 

Ilustração: Bianca Grassi

 

A HORA DE 50 MINUTOS

 

com as mãos sobre o colo sentada naquele divã um profundo sentimento de estranheza toma conta de mim e a vontade que tenho é sair correndo dali sem pestanejar mas a consciência me impede e distraidamente pouso os olhos nas paredes brancas com alguns quadros dependurados que me fazem lembrar a visita que fizera recentemente a galeria de artes que era por sinal uma de minhas distrações prediletas e sinto meu rosto corar quando me deparo com o olhar inquisidor do terapeuta a minha frente esperando que eu desse inicio a sessão o que com certeza eu não tinha a menor vontade de fazer porque hoje me sentia esvaziada de palavras mas sabia que quanto mais eu demorasse mais me sentiria constrangida e seria dinheiro posto fora coisa que eu não poderia me dar ao luxo assim como também em anos de terapia aprendera que essa resistência de minha parte significava algo importante que estava submerso representando material de primeira a ser trabalhado em terapia e tudo o que tinha a fazer era dizer a primeira frase que depois o resto fluiria como um rio caudaloso e o tempo passaria a ser pouco para extravasar uma torrente de emoções que aflorariam o que traria em mim um arrependimento por não ter começado logo a falar e assim pensando não me demorei nem mais um segundo e só me dei conta que o tempo havia terminado quando meu terapeuta olhou discretamente o relógio em seu pulso

 

 

 

***

 

 

 

REPRISE

 

naquela manhã quente de verão suas mãos estavam frias e todo seu corpo parecia desvanecer numa palidez inesperada enquanto ouvia sem acreditar o homem que amava dizer-lhe adeus em palavras lançadas como pontas de faca afiada em seu peito matando dentro dela qualquer fio de esperança nesse amor ao qual se entregou sem medidas coisa que jurara para si mesma não mais fazer pois já conhecia o fim e sabia o quanto era amargo como fel e assim estava ele à sua frente agora sendo forçada a assistir o mesmo filme que já conhecia passar frente a seus olhos na mesma forma forçadamente amena de dizer adeus como dizem todos aqueles que se julgam superiores de alguma maneira por haverem superado um sentimento que antes existia e por acharem que se bastam a si mesmos podendo do outro dispor como fosse um chinelo velho que não tem mais serventia sem pensar ao menos que esse mesmo objeto tanto tempo lhe serviu e aqueceu os pés em tempos frios e nem mesmo o olhar incrédulo do outro pode dissuadi-lo do término e nem mesmo a lágrima que disfarçadamente escorre do canto dos olhos o comove como se uma capa de frieza o envolvesse e nada mais possa tocar seu coração que um dia se mostrou tão amoroso e seus lábios que agora proferem palavras duras e cortantes nem mais parecem os mesmo lábios de onde só saíam palavras murmuradas docemente e promessas de amor eterno

 

 

 

***

 

 

 

O OUTRO EM MIM

 

É… a vida que escapa da memória e se perde em devaneios . Quando é melhor esquecer para que a fantasia tome o lugar da realidade… sabe-se lá… E a fantasia ganha asas e voa cada vez mais longe e cria raízes e cada vez mais real ela se torna. Traveste-se de encantos e assume o lugar que não lhe pertencia. Faz-se tentadora com seus ardis e artimanhas com a expressão do desejo de uma vida não vivida. E quem não quer uma vida que não é a sua? A grama do vizinho é sempre mais verde e os frutos mais saborosos. O doce mistério de ser o outro! Apoderar-se de outra vida, de outro corpo, incorporar o outro em si e perder-se. Loucura insana? Pode ser… mas o que importa? Quando se está perdido busca-se uma saída e há tantas portas! E atrás de cada porta o desconhecido habita, sempre à espera para ser desvendado.

 

 

 

***

 

 

 

VIDRO E CORTE

 

um sabor de morte e de coisa finda no desalento em cacos de vidro espalhados por todos os lados a vida que se esvai em poças de vermelho sangue a tingir o branco azulejo como marco derradeiro de despedida do débil e frágil corpo jogado na frieza desse chão impuro de um banheiro público onde tudo são escombros e dejetos na louça trincada e encardida do vaso sanitário ainda cheirando a urina e da pia entupida onde tantas mãos foram lavadas em dias e noites desumanos daqueles que vivem na descrença de uma vida melhor abandonados que estão à própria sorte e desgraça sem ter ao que recorrer e ninguém com quem contar para ao menos dividir sua miséria de existir e estar pela vida mendigando migalhas de miseráveis de espírito sem compaixão e sem coragem de continuar põem fim a sua parca existência de forma trágica como esse corpo que aqui jaz

 

Ianê Mello é carioca, nascida no Rio de Janeiro. Foi professora e orientadora educacional no município. Pós graduada em Pedagogia pelo Instituto Isabel. Experimenta diversas propostas em textos literários, desde poemas e haicais até a prosa. Edita e participa de fóruns literários e tem textos publicados na Comunidade Benfazeja, na Revista Zunai, na Revista e Mallarmagens, na Revista Biografia, na Revista Novitas e na Antologia “A nova poesia brasileira “, pela editora Shogun Arte. Em 2013, publicou seu livro de poemas “Tessituras e Tramas”, pela editora Verve.

 

 

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