Rodrigo Melo
A NOITE QUE ENGOLE TUDO
Desligo os faróis antes de alcançar o alto do morro e deixo o carro deslizar suavemente, como se planasse sobre uma nuvem, até parar embaixo de uma árvore. É tarde, não há ninguém, nem mesmo os nóias. Apenas nas luzes da cidade, lá embaixo, há algum sopro de vida. Salto do carro e acendo um cigarro. Uma vez Kersey me disse que a gente nunca deve ter pena de vagabundo. Vagabundo tem mesmo que se fuder, do contrário fodem com a gente. Eu nunca discuto com Kersey. Ele está nisso há muito mais tempo que eu.
Jogo o cigarro no chão e caminho até a casa com o portão verde. Bato três vezes. Alguns segundos se passam e escuto o barulho de uma porta sendo aberta e, em seguida, passos arrastados, os chinelos ralhando sobre o cimento do passeio que leva até o portão.
– Quem é? – ele pergunta.
– Te dou uma chance pra descobrir.
Depois de três segundos, ele destrava o ferrolho e o portão fica entreaberto. Está com os olhos inchados e o rosto suado, a cara de quem não dormiu.
– Ainda não tenho a grana.
– Não tem nada?
– Alguma coisa. Não é muito.
– Eu quero.
Ele me encara. Está desconfiado.
– Espere aqui.
Encosta o portão, se vira e caminha até a entrada da casa.
Cruzo a porta e vejo uma mulher deitada no sofá, de frente para uma mesinha onde há um prato com algumas gramas de pó. É loira, magra e, quando seu olhar de vampiro pousa sobre mim, imediatamente se encolhe, espremendo-se contra o sofá, uma almofada suja servindo de escudo. Faço sinal para que continue em silêncio, mostro a arma em minha mão. Pergunto onde ele está e ela aponta para o quarto. Sento-me em uma cadeira e espero.
Dois minutos depois, ele passa sem me notar. Está com o dinheiro na mão. Tem um 38 nas costas, preso à cintura. Ele nota a mulher espremida no sofá e, ao reparar nela, me vê.
– Pra quê o 38? – pergunto.
Seu rosto está congelado. As narinas dilatam-se por conta da respiração.
– O dinheiro tá aqui. Quase dois mil. Consigo o resto em uns dois dias.
– Não vim atrás do dinheiro. Quero minha parte da encomenda.
– Que encomenda?
– Você sabe.
– Não sei, não. Seja lá quem falou isso de encomenda, é mentira.
Fico de pé e caminho até ele. Pego o dinheiro de sua mão, coloco no bolso e então aponto a arma pra mulher no sofá. Ela grita e se protege atrás da almofada.
– Já disse, cara – ele responde -, não sei nada sobre o que tá falando. Muito menos ela!
– Tem certeza?
– Claro!
– Não está mentindo?
– Eu não minto pra você.
Deixo de apontar a arma para a mulher e a direciono para a cabeça dele. Seu rosto se contorce, os olhos piscam naquele segundo em que calcula se daria tempo de pegar o 38. Atiro no instante em que ele, com os olhos esbugalhados, faz o movimento. A mulher dá outro grito e se agarra à almofada, enquanto ele cai morto no chão.
– Fica de pé – digo pra ela.
– Não me mate, por favor!
Ela se levanta lentamente, o corpo inteiro treme. Usa uma bermuda jeans gasta e uma camiseta com a foto de uma garota, o nome Raquele escrito em cima.
– Sabe onde está?
– Sei… Na caixa d’água. Foi lá que ele subiu.
Há um limo grosso sobre a Eternit. Ando com cuidado. Tenho medo de escorregar ou de quebrar uma das telhas e cair. Seria estranho morrer assim. Tento imaginar o que escreveriam no jornal: POLICIAL CAI DO TELHADO APÓS TIROTEIO COM TRAFICANTE. Abro o saco plástico azul escondido na caixa d’água e, dentro dele, vejo dois pacotes enrolados com fita adesiva. Enfio o canivete em um deles e coloco o pó na gengiva. Em dois segundos, está dormente. Fecho o saco e volto a andar sobre a Eternit, cada passo como um salto rumo ao abismo.
A mulher teve tempo de fugir, mas continua ali, sentada no sofá, olhando para o corpo do bandido no chão. Ao seu lado, sem que consiga enxergar, Kersey se senta, cruza as pernas e olha pra mim. Eu sei o que quer. Nunca deixe testemunhas, ele me disse uma vez. Nem perca tempo com eles. Aponto a minha arma para ela.
– Você disse que não ia me matar! – a mulher grita, os olhos miúdos, cheios de lágrimas. – Eu falei o que você queria! Por favor, não me mate!!
– Quem é a menina?
Ela me encara, sem entender.
– Raquele – digo, apontando a arma para sua camiseta.
Ela suspira, estica a camiseta e olha para a imagem.
– Minha irmã. Desapareceu há dois anos. Tava brincando na rua e sumiu.
– Encontraram?
– Não. Minha mãe sonhou que ela já estava morta.
Abaixo a arma e saio da casa carregando os dois pacotes, enquanto ela me observa. Vou até o carro, sento no banco do motorista e acendo um cigarro, olhando para a cidade lá embaixo, para o pouco de vida que ainda resta.
– Uma vagabunda viciada é só uma vagabunda viciada – Kersey diz, sentado no banco do carona. – Volte e acabe com ela. É assim que a gente faz.
Olho pra ele. Paul Kersey. O mesmo bigode de sempre, o mesmo gorro sobre a cabeça, o olhar de quem já testemunhou coisas demais. Um grande homem, uma constante inspiração. Agora, no entanto, estou cansado.
– Vamos deixar essa merda pra lá, Kersey. A mãe dela já chorou demais.
Ele dá de ombros e, de um segundo para o outro, desaparece em meio à noite que engole tudo. Eu ligo o carro, acendo os faróis e começo a descer a ladeira.
Rodrigo Melo tem publicados dois livros de histórias curtas, “O Sangue Que Corre Nas Veias” e “Jogando Dardos Sem Mirar O Alvo”, ambos pela editora Mondrongo, e participou das coletâneas de contos “82, Uma Copa/15 Histórias” (Editora Casarão do Verbo), organizado por Mayrant Gallo, e “Outro Livro na Estante” (Editora Mondrongo), organizado por Herculano Neto. Escreveu, ainda, o livro de poesia “Enquanto O Mundo Dorme”, e o romance “Riviera”. Mora em ilhéus, no sul da Bahia.