Dedos de Prosa III

Marciel Cordeiro

 

Ilustração: Drika Prates

 

E essa solidão não vai me deixar em paz

 

Ninguém se importa que você esteja escrevendo seu próximo livro. Para eles o mais importante é eleger o novo presidente, ou ir ao show de um cantor sertanejo que cobra cachês exorbitantes. O importante é escrever aquele texto, aquela fala, aquelas linhas. Dizer que o personagem é um maldito esquizofrênico.

Abro a janela. Puxo a persiana e vejo a montanha que protege a cidade. Já não ouço aquela velha canção do Otis que diz, eu espero que você possa entender isso, meu amor. No fundo agora me sinto mais solitário que o Roberto Baggio depois de errar o pênalti. Mas a vida é uma maldita competição sem regras. Você fica perdido num labirinto sem saída.

Volto para aquele bar às margens da avenida. Tenho aquela velha mania de nunca me sentar de costas para a rua. Bebo porque assim a melancolia tem mais sentido. E a garota que amo, diz que fará de tudo para me esquecer. Mas no fundo sou um egoísta, alguém que decepciona no fim.

 

 

 

***

 

 

 

Perdido em São João de Meriti

 

Morei um curto tempo em um quarto de motel, em São João de Meriti.  O motel parecia um prédio velho abandonado. Havia uma luz de néon ofuscada e um estacionamento que funcionava como ponto de usuários de drogas. Ficava próximo aos trilhos da Supervia. Aquele motel atendia as pessoas do submundo. Barato e próximo de uma estação de trem.

Quando passava das dez da noite aquele prédio fervia. Eu saía do meu quarto e ficava dando voltas por ali. Creio, que pensavam que eu poderia ser um cana que trabalhava de segurança nas horas vagas, mas talvez não, eu nunca tive cara de cana. Tinha mais cara de traficante querendo tomar a boca de outro do que qualquer outra coisa.

Certa vez bateu um temporal. Esses temporais de verão que chegam sem avisar. Com direito a raios e trovões. E eu estava debaixo da marquise do motel olhando aquela tempestade. Sou fascinado por tempestade. E de repente veio chegando mendigos, usuários de drogas e travestis. Um aglomerado de pessoas. Ficamos todos ali. Os raios caíam e depois vinha o trovão. Era fantástico. Só que aí chegou a Kombi de abordagem da Assistência Social. Alguns correram, outros fecharam a cara. E eu fiquei na minha. Apareceu uma mulher de óculos com uma prancheta na mão e colhendo os nomes das pessoas. Até que chegou minha vez. Respondi todas as perguntas. Quando a Kombi partiu só havia eu ali debaixo daquela marquise.

Depois um raio atingiu uma torre de telefone. Havia um ponto em comum entre eu e aquelas pessoas. Procurávamos algo. Eu não sabia o que. Muito menos aquela Assistente Social de óculos e com uma prancheta na mão.

 

 

 

***

 

 

 

Sou puro fogo

 

Sou impetuoso. Tenho me controlado. Mas sou filho de Xangô. Tem dias que quero botar fogo no mundo. Então, eu respiro fundo e me controlo, falo comigo, “acalma-se, precisa se livrar desse senso de justiça”. Isso não é bom. A psicóloga diz que preciso descarregar. Desligar o cérebro. Que tenho muita energia acumulada e que isso vai me destruir. Isso me machuca um bocado. Sabe, o filho de Xangô só fica em paz quando a tempestade cai, quando os raios cobrem o céu, quando os trovões estremecem o chão. Temos muitas coisas dos negros africanos que vieram das matas tropicais. Um filho de Xangô não serve para a calmaria. Um pai de santo me disse que devo ter cuidado com os amores, esses amores fugazes e passageiros. Tive várias paixões e não consigo descarregar do que já passou. Parece que estamos amarrados ao outro. O amor parece me socar ferozmente. Fico na lona. Melancólico e deprimido. A melancolia tem gosto de suco gástrico que sai junto ao vômito em dias de ressacas. Tenho me cuidado. Buscado mais espiritualidade, sou muito cético.

E hoje pela manhã comprei uma briga com um velho que estava colocando dois galos para brigar. Tenho pavor aos maus tratos com animais. O velho falou que aquilo era hobby, que era a única coisa que tinha pra fazer. Eu não me importei com a solidão dele. Eu também preciso cuidar de minha solidão. Por fim voltei para casa e liguei o rádio. O locutor entrevistava uma advogada com especialização na área econômica. Falava que algo precisaria ser feito para salvar a economia. Eu fico triste todas as vezes que ouço esse papo furado.

Tenho que fazer um banho de descarrego. Cuidar do santo. Preciso deixar de pulverizar raiva pelos poros. Vou ao banheiro e me masturbo. Isso me deixa leve por alguns minutos.

 

 

 

***

 

 

 

Eu gosto de me sentir forte e importante. Acho que todos nós. Ninguém nasce fadado ao fracasso. No entanto, há um sistema que não conhecemos que tenta nos deixar para baixo. Quando criança você sonha, quer ser algo importante quando estiver adulto. Eu quis ser um monte de coisas, por fim me restaram duas opções. Vagabundo e escritor. Na verdade, acho que sou os dois. Um vagabundo é um intelectual pobre, fica ali garimpando o que todos acham que não presta e o escritor é um vagabundo oportunista. Passa tudo para o papel. Nesses momentos de crise há muita matéria-prima para um escritor. Somos como os banqueiros. Mas os banqueiros querem grana. Lucro. E só. Já um escritor escreve por egoísmo, para dar sentido à vida, ou nem sabe ao certo por que escreve.

Às vezes ficamos improdutivos. Não há nada para escrever. Sentamos frente ao computador e não conseguimos. Tento escrever sobre o amor, esse amor comercial do sistema capitalista, escrever de coisas fúteis que parecem importantes para muitas pessoas. Ou uma crítica pesada à política. Não. Isso não é legal. Uns falam que para escrever precisamos de técnica, outros falam em coisas espirituais. Comigo não funciona. É como sexo. Eu escrevo como se fosse uma boa transa. Uma foda. Eu gosto da palavra foda. É mais subversiva.

Nesses últimos dias tenho ficado inquieto. Ando impaciente pela casa. Falo sozinho e recito uns poemas em voz alta. Canto canções que invento. Eu nunca lembro uma canção por inteiro. Sou péssimo para cantar. Mas é isso. Hoje o dia está lindo. Sol, céu azul e algumas poucas nuvens brancas.

 

Marciel Cordeiro é baiano, reside no Espírito Santo. Graduado em Serviço Social. Publicou alguns contos e poemas em antologias.  É o autor dos livros “Caminho para Texas”, publicado pela editora Cousa, em 2019, e “Essa coisa louca chamada amor”, 2021, também pela editora Cousa.

 

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1 comentário

  1. Quando não se pode comentar, fez-sentido ser lido. Nem tudo é passivel de explicação ou questionamento, na alçada das letras, me afino com manuel de barros.

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