Dedos de Prosa IV

Berg Morazzi

 

Foto: Hermes Polycarpo

 

Três

 

Era aniversário de um ano de casamento. Meu segundo casamento. Decidimos fazer um pequeno jantar para comemorar, convidamos alguns amigos. Eu não conhecia todos os amigos de Marina, acho que ela já conhecia todos os meus, pois não eram muitos.

Fui ao supermercado em busca de um bom vinho, pensei em levar um argentino, mas isso me remetia à minha antiga esposa. Acabei levando um italiano. Comprei mais umas azeitonas e amendoins, a maior parte dos convidados tornou-se adeptos do veganismo. Os que não fossem veganos teriam que comer nossas comidas. A regra da casa era “sem crueldade animal”.

Na fila que eu peguei havia uma velha na frente. Sempre as velhas. Ela tinha o carrinho mais cheio que a conta bancária de Bill Gates. Logo atrás de mim uma mulher linda, cabelos pretos, ondulados, pouco menos de um metro e setenta. Levava apenas uma garrafa de vinho, um vinho chileno que eu adorava.

– Ótima escolha. – apontei para a garrafa.

Ela estava meio distraída. Quando processou o que eu disse, respondeu:

– Ah, sim! Adoro esse vinho. Na verdade, adoro os vinhos chilenos, têm bons preços e o sabor raramente deixa a desejar.

– Concordo.

Ela tinha algo além da beleza óbvia, seduzia com seu jeito de andar ou falar. Tinha um tipo de magnetismo que não me deixava desviar o olhar.

A velha passou as compras e deixei a mulher passar na minha frente, fui gentil, acho que todo mundo deveria ser. Nem sempre fui legal assim, mas a vida ensina que devemos ser menos cuzões e fazer algo de bom, ainda que pareça pequeno.

Num piscar de olhos a atendente passou o vinho dela, que por sua vez pagou na mesma rapidez, com dinheiro trocado, também dispensando o uso de sacola plástica. Despediu-se de mim, agradecendo a gentileza. Desceu para o estacionamento.

Paguei minhas compras, também desci para o estacionamento. Coloquei as compras no banco do carona, pois não levaria ninguém. Quando arranquei com o carro, fui fechado por um SUV prata. Abaixei a janela, pronto para ser rude e começar a gritar feito um imbecil, mas lembrei do que vinha me dizendo mentalmente: “vamos tentar ser menos bosta”.

Umas madeixas pretas e onduladas saíram da janela do motorista do carro à frente:

– Desculpe!

Não tive outra reação, a não ser gritar:

– Tudo bem!

Coloquei o carro na garagem. Antes de subir, fumei um cigarro. Marina não gostava do cheiro de cigarro, dizia que lembrava seu pai, e ela o odiava. Eu até a entendia e fazia o possível, menos parar de fumar.

Terminei, coloquei uma bala de hortelã da boca, subi. Quando cheguei no penúltimo degrau, lembrei que as coisas ficaram no carro. Voltei para buscá-las.

Alguns convidados já estavam lá. Meu melhor amigo, André, com sua nova noiva. Acho que era a terceira ou quarta. Eu o entendia, relacionamentos são difíceis. Tinha chegado também um amigo escroto de Marina. Era do TI do trabalho dela, cantava nos bares da cidade nos fins de semana, achava que seria o próximo Tim Maia. Eu odiava aquele cara, ele quase acabou com meu casamento uma vez.

Cumprimentei meu amigo e sua noiva com um caloroso abraço, ele sempre teve bom gosto para as garotas, eram lindas e gentis. Não fui tão cortês com o outro, apenas acenei com a cabeça, de longe.

Levei as compras até a cozinha, Marina me seguiu.

– Você pode tentar ser menos babaca? – ela veio se aproximando de mim com raiva.

– Não com ele.

Para quebrar o gelo, dei-lhe uma flor, que estava meio amassada por estar na sacola, abracei e beijei-a.

– Você é um babaca, mas é o meu babaca.

– Estou sendo menos babaca ultimamente, mas não menos seu.

Preparei alguns petiscos, enquanto isso os outros convidados chegavam. Minha surpresa foi tanta que quase deixei cair a bandeja no chão. A mulher do supermercado sentada dentro de minha casa.

Ela se levantou ao me ver, sem esconder a surpresa.

– Vocês se conhecem?

– Não. – minha resposta.

– Sim. – resposta dela, que logo emendou. – Ele me deixou passar na frente da fila do supermercado.

– Sinal que as sessões de terapia estão funcionando. – Marina ironizou.

Cheguei perto do ouvido dela:

– Não precisa falar dos meus problemas para os outros.

Sem censura, ela escandalizou:

– Daniela não se encaixa na categoria de “os outros”. É minha melhor amiga, dividimos apartamento na época da faculdade. Ela só não veio ao nosso casamento porque estava morando em Chicago. Chegou há uma semana.

Senti tanta vergonha que deu vontade de enfiar a cabeça no chão, como um avestruz. A moça esticou a garrafa de vinho para mim.

– Muito prazer, Daniela Portillo.

Peguei a garrafa, sorrindo timidamente.

– Hugo Saavedra.

Jantamos, bebemos, conversamos, rimos, todos nós. Até ignorei o olhar estranho do babaca do TI e aquela sudorese nojenta nas axilas. Daniela era discreta, mas quando queria, tomava a atenção de todos. Tinha boas ideias, boas histórias. Bom decote também, que eu lutava para não ficar encarando.

Pouco a pouco os convidados iam saindo. Em questão de menos de uma hora, não havia mais nenhum. Eu e minha esposa levávamos as coisas para a cozinha.

– O que você achou, meu amor? – perguntei à Marina.

– Adorei, foi tudo incrível. A noiva do André é linda e muito simpática…

– É mesmo, ele tem bom gosto.

– Já a Karen, meu Deus! Quem é aquele peixe morto que ela foi arrumar? Ele deveria deixar a barba crescer, assim não ia parecer ter acabado de sair do ensino fundamental.

– Verdade.

– Ela engordou também, nem devem estar transando.

Ri alto.

– Duvido! Ela é ninfomaníaca.

– Como você sabe disso?

– André…

– Eles já?

– Várias vezes. Uma vez teve até participação da garota que dividia apartamento com ela.

Marina colocou a mão no rosto, tocando a orelha esquerda com as pontas dos dedos, como sempre fazia quando estava surpresa.

– Ela nunca me disse isso.

– Você tem o jeito muito fechado, sua cabeça é muito fechada.

Vi seu rosto enrubescer, eu conhecia bem aquela mulher, sabia que ela não estava brava, mas tímida. O problema é que quando ficava tímida, aumentava o tom de voz, num tom quase que de briga.

– De onde você tirou que eu tenho a cabeça fechada?

– Você faria um ménage?

– Nunca pensei sobre isso.

Ela me conhecia o suficiente para saber que se passava sacanagem na minha cabeça, quando eu abaixava a cabeça e dava um sorriso de lado.

– Você já, não é mesmo?

– Ah… sabe… eu acho que seria uma coisa legal de experimentar.

– Não sei.

Sua voz titubeou, havia uma brecha. Eu tinha que tentar.

– Já que você confia tanto na Daniela… Seria legal. Queria dizer, ela parece ser legal.

– Acho que ela não é do tipo que faria isso.

É sim! – gritei em pensamento.

– Só tem um jeito de saber.

– Qual é?

– Fazendo o convite a ela.

Era minha última jogada, não sabia o que vinha depois, podia ser o xeque mate. Ela me olhou nos olhos, ficou alguns segundos assim, então respondeu:

– Tudo bem, vou falar. Agora vamos acabar de arrumar essas coisas aqui, a noite ainda não acabou para nós.

Transamos a noite toda, foi incrível. Alguns meses depois estávamos divorciados. Nunca mais vi ela ou Daniela. Não tivemos um ménage a trois. Talvez no meu terceiro casamento.

 

Berg Morazzi, nascido em 17 de maio de 1992, em uma pequena cidade de Minas Gerais. É escritor, roteirista, audiodescritor e ativista vegano. Autor dos livros “Sobre a lucidez e outras farsas”, “Obsolescência Cotidiana”, “Isso nunca foi sobre o amor”, “Enquanto a cidade dorme”, “As flores morrem o ano todo” e “A um passo do precipício”. Traz em sua prosa uma mistura exótica de Paulo Coelho, Gabriel Garcia Marques e Charles Bukowski. Mostrando o doce e o amargo da vida cotidiana, criando personagens profundos e histórias reflexivas.

 

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