Drops da Sétima Arte

Por Guilherme Preger

 

Ema. Chile. 2019.

 

 

Ema, mais recente produção do chileno Pablo Larraín, estreou no Festival de Veneza, em 2019. Chegaria às salas de exibição públicas não fosse a interrupção do confinamento provocado pela pandemia. No dia 1º de Maio, como homenagem ao Dia do Trabalho, a plataforma Mubi disponibilizou uma sessão gratuita do filme por 24 horas.

Larrain se tornou conhecido do grande público por sua trilogia de filmes Tony Manero, Post Mortem e No. A trilogia é uma extraordinária filmografia da ditadura chilena pinochista. Os três filmes têm a presença do grande ator Alfredo Castro, espécie de ator-fetiche de Larraín.

À parte a importância história e política imediata da trilogia, os três filmes também representam esteticamente uma reflexão do diretor sobre as relações de tradução da cultura da metrópole para a colônia, ou das relações ideológicas entre o centro e periferia. Sobretudo em Tony Manero (2008), um dos filmes latino-americanos mais importantes do século XXI, estão em jogo as formas de dependência estética e da assimilação (ou apropriação) que a periferia faz da cultura globalizada hegemônica numa situação de ditadura militar.

O Clube (2015), sobre a “prisão domiciliar” onde padres católicos são afastados de suas atividades pela própria Igreja, devido a questões sexuais ou crimes de pedofilia, parece ser um filme de transição entre o retrato fílmico histórico e o dilema entre indivíduo e instituição.

Os últimos filmes de Larraín, feitos quase paralelamente, sobre as vidas históricas de (Pablo) Neruda e Jackie (Kennedy) (2016) trazem entre eles esse jogo de relações, entre influência e apropriação, da polaridade centro-periferia que os filmes anteriores da trilogia abordam internamente. Ema também traz a participação do ator internacional Gael Garcia Bernal, outra presença constante nos filmes do diretor (em No e Neruda).

Em Ema, no entanto, temos a abordagem de uma vida singular ficcional que não está imediatamente vinculada a um contexto histórico. Neste aspecto, o filme se aproxima de Uma Mulher Fantástica, de Sebastian Lelio, filme que teve produção do próprio Larraín. Pois é exatamente a singularidade de uma vida comum que é nesse filme retratada.

Ema (vivida por Mariana Di Girolamo) é bailarina profissional numa companhia de dança moderna na cidade de Valparaíso. Ela é casada com o coreógrafo da companhia (Gael Garcia Bernal). Juntos decidem adotar uma criança, mas devido a incompatibilidades e incidentes acabam por devolver a criança ao orfanato de onde veio. Essa experiência frustrada de adoção e rejeição é traumática para a vida do casal. Ambos começam a partir de então a se questionar sobre a relação conjugal, sobre suas moralidades e mesmo sobre suas sexualidades. A principal questão parece ser que ambos, a mulher e o homem, aparentam viver de formas diferentes o fracasso da relação de maternidade e paternidade.

 

Foto: divulgação

 

A questão de devolver a criança é um ato dramático e traumático e é irreparável tanto para o casal como para a criança. O filme já começa com tal fracasso tendo acontecido. O espectador não sabe ao certo a motivação dele. Há acusações recíprocas de responsabilidade. A irmã de Ema aparece com o rosto gravemente queimado e esse incidente parece ter a ver com a criança. A narrativa do filme transcorre embaralhando a passagem do tempo e a linearidade entre passado e presente, de modo que o espectador também não consegue reconstruir o contexto daquela decisão. O roteiro nos dá a indicação de que o próprio casal não sabe exatamente como justificá-la, pois devolver a criança parece ser também uma confissão da incapacidade de assumir responsabilidades ou do sentimento de incompatibilidade com seus papéis parentais. É o que lhes diz a senhoria que testemunhou a favor deles no processo e agora se arrepende após o fracasso da adoção.

O ponto de vista do roteiro é o de Ema. Ela parece como decidida a reparar o erro de sua decisão. Ela é sem dúvida uma personagem singular e obstinada. Jovem, bela e de poucas palavras, é mais capaz de se expressar através de seu corpo do que com suas palavras. A característica mais notável é sua predileção por um lança-chamas. Ela o carrega pelas ruas de Valparaíso à noite para lançar labaredas pelas ruas da cidade, rendendo belíssimas imagens cinematográficas. Em suas andanças, ela costuma ser acompanhada pelas amigas bailarinas da mesma companhia. Elas gostam de dançar reaggeton nas horas de folga e o filme tem incríveis cenas de dança urbana.

Estilisticamente, Ema é o filme mais deslumbrante visualmente do diretor chileno. Ema e suas amigas, em suas andanças e danças, em suas conversas e em suas transas, com seus corpos femininos ou andróginos exuberantes, imbricam o filme em seu contexto espaço-temporal. Espacialmente, pois é a reconstituição paisagística e arquitetônica da extraordinária cidade portuária chilena, reconhecida por ser uma cidade de jovens, repleta de grafites, com uma importante universidade. Temporalmente, porque as vidas jovens e libertas de Ema e suas amigas, cheias de sensualidade e sororidade, formulam novas formas de solidariedade e de vivência social.

 

Foto: divulgação

 

A certa altura do filme há uma discussão entre as mulheres bailarinas e o coreógrafo homem. Ele questiona o gosto de suas alunas por dançar reaggeton pelas ruas da cidade enquanto a companhia ensaia uma reformulação coreográfica de danças folclóricas chilenas em estilo moderno. Para o coreógrafo o reaggeton não é mais do que um ritmo simplificado e sexual. Mais do que simplesmente uma discussão acadêmica, de viés frankfurtiano, entre música de indústria e música sofisticada, o que temos neste diálogo é o contraste entre modos de vida que se traduzem esteticamente. Está claro que o coreógrafo inveja a liberdade sexual de suas bailarinas. Neste diálogo vemos reencenado o jogo entre a cultura do centro (dominante) e a cultura da periferia, que se apresenta nas outras obras de Larraín.

Ao final, é precisamente a belíssima cenografia e a maravilhosa coreografia que transborda dos espaços fechados para as ruas, bem como a exposição das vidas livres das jovens que fornece a esta obra cinematográfica um viés utópico. Se, por um lado, o móvel de toda trama é um trauma, um conflito individual à procura de resolução e reparação, por outro, esse conflito é o paradoxo que movimenta o desejo, os corpos e os gestos. Pablo Larraín articula em Ema a emergência de novas formas de se viver o amor, a amizade, o sexo e as relações parentais, e as relaciona não apenas à juventude, mas sobretudo à existência periférica. Esta virtude do filme não é pequena. Que seja acrescentada a ela a casualidade do filme estrear num momento em que a liberdade de movimento dos espectadores está tolhida. Mas é nessas horas de inflexão e clausura que os sonhos voltam a se adensar com os desejos e os devaneios de outras vidas e futuros possíveis. Larraín, Ema e suas amigas, e mesmo o próprio Gael, nos fazem sonhar com um futuro de mais liberdade dos corpos e reparado.

 

 

Guilherme Preger é natural do Rio de Janeiro, engenheiro e escritor. Autor de Capoeiragem (7Letras/2003) e Extrema Lírica (Oito e Meio/2014). É organizador do Clube da Leitura, principal coletivo de prosa literária do Rio de Janeiro e foi organizador de suas quatro coletâneas de contos. Atualmente é doutorando de Teoria Literária pela UERJ com a tese Fábulas da Ciência. É colaborador do site de produção poética Caneta Lente e Pincel. Escreveu sobre cinema para o site Ambrosia.

 

 

Clique para imprimir.

Comente

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *