Drops da Sétima Arte

Por Guilherme Preger

 

Parasita. Coreia do Sul. 2019.

 

 

Parasita (Gisaengchung ), de Bong Joon-ho, é o filme ganhador da Palma de Ouro de Cannes de 2019. Original da Coreia do Sul, ele repete o sucesso de crítica do cinema oriental que em 2018 fez de Assunto de Família, filme japonês, o vencedor do mesmo festival de cinema (resenha aqui).

Há muito em comum entre o filme de Kore-eda e de Joon-ho. Ambos retratam a vida de famílias japonesa e coreana, respectivamente, pertencentes ao estrato mais pobre da população em seu cotidiano de pequenos golpes por sobrevivência. No entanto, no primeiro filme temos uma família fictícia, enquanto no filme coreano é uma verdadeira família. Em comum, há também o apuro da produção estética. Parasita se utiliza de todos os recursos técnicos da edição contemporânea, incluindo a trilha-sonora pop, numa linguagem cosmopolita e globalizada.

E ambos os filmes também encenam a luta de classes no seio desta globalização estética: a vida das famílias que precisam se virar para poder sobreviver são exemplos do precariado global que sustenta com trabalhos completamente informais, e não raro clandestinos ou ilícitos, o cosmopolitismo estilizado de consumo nas sociedades ricas.

Parasita logo nas cenas iniciais apresenta sua metáfora principal. A família que vive no térreo de uma construção abaixo do nível do asfalto se mostra desesperada pela perda do sinal da rede sem fio que usufrui clandestinamente de algum vizinho, pois este resolveu colocar senha de acesso. Assim, o termo parasita assinala essa figura informática que intercepta uma comunicação que não lhe pertence.

 

Foto : The Jokers – Les Bookmakers

 

A família nuclear formada por pai, mãe e dois filhos jovens embala caixas de pizza para um delivery da vizinhança. A perda de acesso à rede é um desastre para a família que depende da internet para poder realizar seus negócios de sobrevivência. O filme se passa na Coreia do Sul que é um dos países com maior densidade de acesso digital. Justamente na Coreia, não acessar a rede é estar fora da cadeia de valor altamente informatizada que fez de um dos países do Terceiro Mundo, com renda menor do que o Brasil nos anos oitenta, grande referência na produção tecnológica avançada.

Mas um lance casual muda a sorte da família. O filho adolescente Ki-Woo é convidado por um amigo refinado a substituí-lo como professor nas aulas de inglês para uma família da classe rica de Seul. Ki-Woo começa então a dar aulas para a filha do casal endinheirado que mora com seus dois filhos menores numa mansão construída por um famoso arquiteto coreano. É então que o jovem vê a oportunidade, através da astúcia e do logro, de inserir toda a sua família para trabalhar na casa. Mas para isso é preciso não apenas enganar a família rica, mas também afastar dois serviçais de confiança, o motorista e a governanta, esta última trabalha na mansão desde o antigo dono. Os dois serão despedidos pelo conluio da família que se insere no cotidiano da mansão.

Assim, a primeira metade do filme se passa como uma comédia de costumes. A malícia da família pobre ludibria a ingenuidade da família rica para usufruir dos confortos dos privilegiados e de seus signos de ostentação. A família pobre então parasita a riqueza da outra família a partir de verdadeiros “golpes de mestre”. O problema é que a perfídia para afastar os também pobres serviçais de seu caminho retorna amargamente para estragar sua gozosa parasitagem. Eles descobrem através da volta da governanta demitida e ultrajada que a casa possuía outro habitante escondido num bunker subterrâneo da casa, construído pelo antigo arquiteto como refúgio de um possível ataque nuclear da vizinha Coreia do Norte. Trata-se do marido da governanta, há anos escondido no bunker, fugindo supostamente da cobrança de dívidas. Como mostra o filme Pietá do também sul-coreano Kim-Ki duk (2012), a cobrança violenta de dívidas é um dos maiores problemas sociais da Coreia do Sul.

 

Foto: Koch Films

 

A partir dessa reviravolta, a comédia se transforma em humor negro e macabro. A divisão de classes entre família rica e pobre é transposta para a guerra cruel entre as famílias pobres que toma lugar na mansão durante a ausência da família rica, em viagem de feriado, como um tipo de ocupação política de seu espaço. O enredo escalona vários níveis de parasitagens: o casal formado pela antiga governanta e seu marido também parasitava a família rica, assim como o bunker no porão parasitava a mansão. E alegoricamente a nunca terminada guerra com a Coreia do Norte parasita o imaginário do sucesso econômico da Coreia do Sul.

Ou ainda, de forma mais sugestiva: o sucesso econômico da Coreia do Sul é parasitado por sua condição de país periférico, cuja função é gerar mais-valia para as economias centrais. Os novos ricos da economia coreana são parasitados pela crescente desigualdade social que alinha as economias globais. E aqui se abre então um paradoxo que o filme de Joon-ho articula: não são os ricos que efetivamente parasitam a produção de riqueza dos mais pobres? Quem parasita quem é uma questão de perspectiva.

Parasita então revira através de uma espécie de geo-estética a lógica hierárquica do cosmopolitismo liberal da linguagem cinematográfica globalizada. Para usar um termo do ensaísta Silviano Santiago, há um “cosmopolitismo dos pobres” neste filme sul-coreano. Se por um lado, a Coreia do Sul, com seu novo cinema de sucesso e a linguagem comercial do K-Pop, consolida um eixo hegemônico internacional de consumo estético e figura um novo imaginário cultural para a região extremo-oriental, no filme de Bong Joon-ho a luta de classes é interiorizada como guerra bruta do precariado. Pois, mais do que qualquer outro, o trabalhador precário é o símbolo corporal da nova economia neoliberal. Ele marca a fronteira pela qual essa economia se expande e se globaliza. O filme figura a má consciência, ou mesmo o inconsciente recalcado dessa expansão.

 

Foto: The Jokers – Les Bookmakers

 

O cosmopolitismo dos pobres sul-coreanos devora por dentro a perfeição técnica da cinematografia do país emergente com cenas de brutalidade próximas ao pastelão. De fato, a cultura de exportação se tornou um elemento poderoso no PIB oriental que abala a hegemonia estética ocidental. A família rica, no entanto, dá mostras do desejo de imitar e simular os padrões ocidentais. São os pobres que vivem do trabalho cada vez mais informatizado e informalizado que realmente se tornam internacionais. Que sabem inglês melhor do que os ricos, que usam a internet para aprender sobre arte-terapia. A pobreza se globaliza, enquanto a riqueza se torna ridiculamente provinciana. A riqueza parasita o conhecimento de vida dos mais pobres que experimentam o real para além do fetiche das imagens publicitárias. E o real retorna no filme como um elemento intimamente corporal: o odor.

O odor é aqui um sinal do real que insidiosamente penetra as barreiras porosas entre as classes. Num certo sentido, é o odor que traça a distinção entre elas. Entre uma classe “pura” e “higiênica” que se relaciona sexualmente apenas no conforto do lar e uma classe “impura” e “suja” que transa com qualquer um e ainda fede. Iguais em suas próprias ilusões de posição, parasitas de um sistema globalizado que se expande numa lógica algorítmica e automática, a fantasia das classes reduz as pessoas a seus corpos-objetos. E a distinção de classe se marca nesses corpos impuros e vulneráveis. Fora do corpo e de suas emanações, a vida é não mais do que a projeção fantasiosa ou fantasmática do sucesso profissional, da riqueza fácil e da ostentação, fantasias parasitadas pelos sonhos utópicos de reconciliação.

 

 

Guilherme Preger é natural do Rio de Janeiro, engenheiro e escritor. Autor de Capoeiragem (7Letras/2003) e Extrema Lírica (Oito e Meio/2014). É organizador do Clube da Leitura, principal coletivo de prosa literária do Rio de Janeiro e foi organizador de suas quatro coletâneas de contos. Atualmente é doutorando de Teoria Literária pela UERJ com a tese Fábulas da Ciência. É colaborador do site de produção poética Caneta Lente e Pincel (canetalentepincel.art.blog). Escreveu sobre cinema para o site Ambrosia.com.br.

 

 

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