Drops da Sétima Arte

Por Guilherme Preger

 

High Life. França/Alemanha/Reino Unido/Polônia. 2018.

 

 

High Life é uma produção internacional de 2018, de idioma inglês, da consagrada diretora francesa Claire Denis, que infelizmente não passou nos cinemas públicos brasileiros, mas que pode ser visualizada pela plataforma You Tube, mediante pagamento. Sendo a primeira obra de ficção científica da autora, é um filme que se adequa a esse período de confinamento pandêmico por causa de seu enredo claustrofóbico sobre a vida artificial. É certamente a produção mais cara da diretora.

Denis é conhecida pelos seus filmes que abordam a sexualidade e o corpo. Seu filme mais importante, Beau Travail (1999), que se passa na África (Denis viveu em vários países africanos quando jovem, acompanhando o trabalho de seu pai), é sobre um affair homoafetivo não declarado entre dois militares, um comandante e um subordinado da Legião Estrangeira Francesa na Argélia. A relação se dá numa mistura de jogo de poder e desejo reprimido, e supõe a troca de papéis, ao estilo “Senhor e Escravo”. Muitas vezes, os filmes da autora abordam as questões do sexo e do desejo na fronteira das transgressões, dos tabus e dos jogos de poder (que frequentemente são também jogos eróticos).

Em High Life, uma missão espacial se dirige para fora do sistema solar e objetiva se aproximar de um buraco negro para estudá-lo. Descobrimos que toda sua tripulação é composta de criminosos que foram condenados na Terra, mas a quem foi dado o direito de substituir suas penas pela participação na missão espacial, “para servir à Ciência”. Aos poucos, todos descobrem que a missão não visa retorno possível à Terra. Em flashback, um cientista denuncia que a expedição é desumana por não supor o retorno dos tripulantes, o que é o mesmo que condená-los a uma espécie de prisão perpétua ou mesmo à pena capital. É ambíguo no filme se os participantes realmente desconhecem seu destino.

Duas personagens se destacam. A primeira é a “doutora” Dibbs (vivida por Juliette Binoche, frequente colaboradora da diretora). Ela é a médica da missão e é também responsável pela “pesquisa” científica a respeito da fertilidade humana nas condições de radiação do espaço sideral. Não se sabe se esta é uma pesquisa “inventada” pela médica ou já decidida pelos cientistas projetistas. Tampouco se sabe se seu posto de médica e pesquisadora foi definido antecipadamente. Aos poucos, saberemos que Dibbs é uma criminosa condenada tal como os demais membros da tripulação. Ela certamente mantém uma ascendência de poder sobre todos que muitas vezes se submetem aos seus experimentos genéticos (fornecem fluidos sexuais). No entanto, nas condições irremediavelmente longínquas da nave, o poder ditatorial e severo que Dibbs exerce sobre os demais poderia ser alvo facilmente de uma rebelião. Mas os outros passageiros parecem passivos demais para lhe questionar o poder. Parte dessa inércia vem do fato de que Dibbs tem acesso a drogas narcóticas que tornam a longa viagem mais suportável.

 

Juliette Binoche / Foto: divulgação

 

A segunda personagem protagonista é Monte (vivido pelo ator americano Robert Pattinson). Ele é o único passageiro que permanece fora da esfera de comando de Dibbs, nem participa de suas pesquisas e nem cede às suas demandas sexuais. Ele é um “celibatário” por sua própria decisão, o que lhe garante uma fortificada “pureza” e uma aura de integridade. Desde a primeira cena, sabemos que Monte será o único sobrevivente da missão, junto com uma criança, menina, recém-nascida. Ele mantém um jardim com estufa num dos compartimentos da nave espacial. A narrativa do filme é construída de forma totalmente não linear e varia com cenas da nave em momentos diferentes e cenas antes da partida, ou ainda com outras da própria juventude de Monte. Não sabemos de onde vem aquele insólito recém-nascido que está com ele nas primeiras cenas.

O antagonismo entre Monte e Dibbs estrutura um dos eixos do enredo. De um lado, a pureza de Monte permite que ele mantenha uma aura de sapiência diante da tripulação. Dibbs, por seu lado, é uma personagem ambígua. De um lado, seu poder vem de seu saber científico e instrumental. De outro, seus longos cabelos e seus pelos abundantes são índices ostensivos de sua feminilidade e de sua sexualidade. Uma das participantes femininas a chama de “bruxa”. A personagem de Binoche assedia sexualmente os homens, mas não consegue os favores de Monte. Há um compartimento da nave que é um cubículo onde ela pode se masturbar sobre um dispositivo fálico de cavalgadura. Assim, ela articula o poder da racionalidade científica e instrumental e o poder arquetípico da sexualidade feminina.

O outro eixo narrativo é o da própria missão, a utopia-distopia da viagem sideral. Claire Denis explicitamente organiza uma montagem cinematográfica em que vários filmes são referências: 2001, uma Odisseia no Espaço; Solaris; Alien, o Oitavo Passageiro; Perdido em Marte. Este último é referenciado pelo jardim interno mantido por Monte. De fato, um dos alvos temáticos de Denis é o projeto de colonização do espaço, em particular o projeto de Elon Musk (Tesla) de enviar uma nave tripulada à Marte sem retorno. As pesquisas de Dibbs sobre a viabilidade da fertilidade humana no espaço sideral estão inscritas nessa experiência de sobrevivência utópica da espécie quando as condições do planeta Terra estiverem irremediavelmente inóspitas (e também lembram a pesquisa do cientista androide de Alien com o material genético alienígena). High Life vai mais longe, para além do Sistema Solar. Porém, submete esse projeto de “escapar” do planeta e do Sistema a uma reversão irônica. A nave é caracterizada como um container grosseiro, como uma caixa de transporte e uma nave-prisão.

 

Robert Pattinson / Foto: divulgação

 

Numa de suas entrevistas sobre o filme, Claire Denis diz que nas condições absolutamente sem esperança das personagens, “o sexo é a única liberdade”. O sexo, o corpo e a carne estão presentes em todos os seus filmes. O que se observa neste último filme é um embate entre o sonho distópico da tecnociência e a espessura dos corpos carregados de sexualidade e desejo. Denis exibe em seus filmes um verdadeiro fascínio com o corpo, seja disforme ou mutilado. Denis é uma feminista diferente, fascinada com a masculinidade. A discussão de gênero está presente em sua obra não à maneira da performatividade discutida pela Teoria Queer, mas como um encrave sexual que acomete a carne, independentemente de seu código genético. Em seu filme clássico White Material (2009), o frágil corpo branco da personagem de Isabelle Huppert recebe uma caracterização de virilidade. O embaralhamento de gênero em seus filmes vem totalmente desprovido de classificações. É algo a ser vivido carnalmente pelas personagens.

Esse embaralhamento sexual também acontece em High Life. Mesmo com sua sexualidade arquetípica, é a personagem de Dibbs que está com o poder fálico da violência da posse. É assim que sua experiência científica terá êxito através de dois estupros em corpos de mulher e de homem. Já a personagem de Monte será retratada desde o início num claro viés maternal e virginal, com uma propensão ao cuidado e à proteção.

Para Denis, os corpos são andróginos. E o sexo é um assunto sobre o encontro desejoso (quase sempre violento) dos corpos. Quaisquer corpos. Mesmo (ou principalmente) com o seu próprio: sexo é também masturbação com o corpo do outro (podendo este ser o “outro de si”). Na relação contraditória entre esperança e desesperança, a ficção científica de High Life é um experimento cinematográfico e também um experimento mental. A viagem de escape para fora do Sistema Solar se dirige a um buraco negro. É o buraco negro que sintetiza as contradições entre mito e ciência, masculino e feminino, ideologia e utopia. E entre o monstruoso e o sublime da arte. O buraco negro é a alegoria da “fenda” do sexo, de sua passagem e de seu encerramento. Da posse que é também uma entrega: possessão.

 

 

 

Guilherme Preger, carioca, é engenheiro e escritor, doutor em Teoria Literária pela UERJ (2020). É autor de Capoeiragem (7Letras, 2013) e Extrema Lírica (Oito e Meio, 2014). É organizador do  Clube da Leitura, coletivo de prosa literária do Rio de Janeiro, atuante desde 2007 e foi editor das quatro coletâneas do Coletivo. É autor do blog Fabulação Especulativa e seus trabalhos acadêmicos podem ser visitados aqui.

 

 

 

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