Drops da Sétima Arte

Por Guilherme Preger

 

Berlin Alexanderplatz. Alemanha/Holanda. 2020.

 

 

Nova versão cinematográfica do grande romance de Alfred Döblin (1929), Berlin Alexanderplatz foi apresentada ao público brasileiro apenas na Mostra de Filmes de São Paulo, sendo um dos filmes de maior repercussão. Trata-se de uma releitura, ou melhor dizendo, reconstrução do romance modernista, que também foi trazido para a linguagem audiovisual na célebre série televisiva de Rainer Fassbinder (1980).

Burhan Qurbani, diretor da versão 2020, é afegão e mora em Berlim. Nesta sua versão, ele atualiza o clássico de Döblin, trazendo a trama para o presente. Franz Biberkopf agora se torna Francis, refugiado negro de Guiné Bissau, vivido pelo ator Welket Bungué, que é conhecido do público brasileiro, pois participou de filmes do cinema nacional tal como Corpo Elétrico (2017) e Joaquim (2017).  Na reconstrução cinematográfica de Qurbani, Francis é um imigrante que entra ilegalmente na Alemanha e tenta a princípio se estabelecer legalmente em trabalhos na indústria. Mas como o Biberkopf original, Francis acaba por se desviar para as atividades ilícitas de comércio de drogas ou de cafetinagem. Nesse seu desvio de rota para a marginalidade, duas personagens lhe servem de balize. A primeira é Reinhold (extraordinariamente vivida pelo ator Albrecht Schuch), traficante de drogas, pessoa ambígua e demoníaca, na melhor tradição fabular alemã de Fausto e de Mefistofeles. Reinhold é perverso, impotente sexualmente e desenvolve uma união umbilical com Francis, que vê nele quase um irmão. A sexualidade de Francis também é ambígua, aparentemente bissexual, assim como sua própria ética existencial, dividida entre o Bem e o Mal, entre o desejo de se tornar um cidadão alemão normal ou um traficante, entre a amizade por Reinhold e o amor de Mieze.  Esta é outra personagem principal, de índole oposta (vivida pela atriz Jeela Haase), uma prostituta angelical que se casa com Francis e lhe serve de guia amoroso e espiritual. É dela a voz narrativa que justamente narra a peripécia de Francis em busca de sua Salvação, assim mesmo em maiúscula, para acentuar seu tom teológico (próprio ao nome do protagonista que lembra o nome do santo cristão).

 

Cena de Berlin Alexanderplatz / Foto: divulgação

 

Um diretor afegão, um herói negro imigrante no lugar de um branco, a obra de Qurbani tem tudo para se tornar uma verdadeira desconstrução do clássico literário germânico.  Mas, em certo sentido, trata-se de uma versão bastante fiel ao espírito original do romance. De fato, as desventuras de Franz na década de 20 na Alemanha, período imediatamente anterior à ascensão do fascismo, estão todas fielmente traçadas neste filme de 2020. Esta versão é longa, com 180 minutos, dividida em 5 partes, mas ainda bem menor do que a versão de Fassbinder, com seus 14 capítulos e 15 horas de duração.

Mas a obra modernista de Alfred Döblin tinha desde sempre uma forma plástica, feita para apropriações. O próprio autor realizou a primeira adaptação, ao fazer uma leitura de sua obra por transmissão radiofônica. Em seu famoso ensaio sobre o romance de Döblin, Walter Benjamin nos mostra como em Berlin Alexanderplatz a narrativa épica reaparece nas ruínas do Romance burguês. É através da transposição da montagem cinematográfica para dentro do Romance, que o discurso romanesco é implodido e, na verdade, desmontado. Para Benjamin, Alfred Döblin tem mais sucesso do que James Joyce nessa tarefa de desconstrução da narrativa moderna. Há nesta leitura benjaminiana claramente a influência de Brecht: o retorno da narrativa épica através da montagem é a vitória da memória coletiva, possibilitada pela técnica das massas, contra a interioridade burguesa e individualista do Romance de Formação. O mundo fronteiriço pequeno-burguês de Franz Biberkopf é típico dos heróis brechtianos: proxenetas, mafiosos e prostitutas, figuras de um mundo em dissolução. O tema da impossibilidade da bondade num mundo pérfido é recorrente. A única maneira de ser bom num mundo ruim é fazer a revolução e transformar o mundo. Do contrário, a bondade não passa de máscara hipócrita.

A versão de Fassbinder recupera outra dimensão pela qual o texto de Benjamin passa batido: a saga de Biberkopf é outra versão da mitologia fáustica, mefistofélica, representada pelo antagonista Reinhold, cuja maldição assombra a cultura germânica. Fassbinder, que é o mais agudo crítico da Alemanha do pós-guerra, vê no pacto burguês após a catástrofe do Holocausto novos sinais desse pacto demoníaco. A transposição medial de Fassbinder é então realizada através de outra técnica. Ele recupera a dimensão folhetinesca do romance de Döblin e a traduz para o ambiente da televisão. A serialização televisiva dissolve o poder contrastante e implosivo da montagem cinematográfica. A dissolução da classe trabalhadora que permitiu o nazismo se torna então figurada pelo pacto pequeno-burguês que essa mesma classe derrotada faz com as forças do imperialismo americano para recuperar a autoestima da nação germânica sobre as cinzas de milhões de judeus assassinados.

Na versão de 2020 do afegão Burhan Qurbani outro giro acontece. Curiosamente, a serialização trazida por Fassbinder ganhou uma súbita contemporaneidade nas séries audiovisuais das plataformas de vídeo sob demanda. Mas Qurbani retoma novamente a força da montagem cinematográfica, das múltiplas perspectivas de ponto de vista, para recuperar a força política original. E, ao mesmo tempo, une essas perspectivas ao folhetim melodramático que marca a versão de Fassbinder. Ao trazer a situação dos imigrantes africanos para o centro da trama, esse movimento desloca politicamente a mitologia germânica. Mais ainda do que em Fassbinder, o pacto entre Francis (cujo nome remete ao atual Papa) e Reinhold é novamente mefistofélico. O filme ainda é serializado, mas a divisão em capítulos não distende a trama, mas a comprime e tensiona. A versão de Qurbani consegue ser mais “fiel” do que a de Fassbinder, no sentido em que toda a técnica da montagem cinematográfica, agora digitalizada, é manobrada na direção da guerra contra o mito. O Romance de Formação burguês se transforma no relato audiovisual da sobrevivência dos imigrantes internacionais, que são o verdadeiro “sangue germânico”, mais alemães do que os próprios alemães, como diz a certa altura um bem sucedido Francis aos seus companheiros africanos, negros como ele.

 

Cena de Berlin Alexanderplatz / Foto: divulgação

 

A versão 2020 assim restabelece a potência cinematográfica da montagem para não perder sua potência política. A mesma ameaça que pairava sobre os trabalhadores alemães da década de 20 do século passado retorna no medo contra o crescimento do movimento de extrema-direita na Europa, assustada com o “espectro do imigrante”, novo corpo do proletariado transnacional. Nesse aspecto, Reinhold assume um típico arquétipo do membro direitista, ressentido, pervertido, alimentador do desprezo pelo outro e, ao mesmo tempo, sequioso por recuperar o desejo de luxúria perdido pela impotência social do neoliberalismo econômico.

Por outro lado, algumas críticas feministas reclamaram da caracterização das personagens mulheres no filme, todas elas “prostitutas”, inclusive a angelical Mieze, que faz o contraponto a Reinhold. Mas é verdade que este mesmo submundo já estava desde sempre retratado na obra original. Walter Benjamin não perdeu isso de vista, ao observar que esta sociabilidade, de fundo pequeno-burguesa, era uma espécie de “fim de linha” à burguesia, e para o proletariado representava o elemento dissoluto de sua subordinação de classe. Este submundo de prostitutas e traficantes está amarrado à trama visual do novo filme entrelaçada, à maneira contemporânea, pela pulsação rítmica e ambientação vertiginosa que o atravessa.  O melodrama pequeno-burguês da obra original é reconfigurado pela pulsão desejante dos corpos marginais, sobretudo do corpo imigrante, negro e mutilado de Francis. Como sonhava Benjamin, há uma vibração ébria e emancipatória trepidando nessa atmosfera sonora e visual. É essa vibração que reverbera na semiose fascinante da nova versão. Ela marca o compasso na trajetória narrativa de Francis de sua Danação à sua Salvação. Quem sabe, nos anos que se seguem à crise pandêmica, haverá esse reencontro com nossos corpos perdidos ou esquecidos na vibração de outros desejos de mundo.

 

 

 

Guilherme Preger, carioca, é engenheiro e escritor, doutor em Teoria Literária pela UERJ (2020). É autor de Capoeiragem (7Letras, 2013) e Extrema Lírica (Oito e Meio, 2014). É organizador do Clube da Leitura, coletivo de prosa literária do Rio de Janeiro, atuante desde 2007 e foi editor das quatro coletâneas do Coletivo. É autor do blog Fabulação Especulativa e seus trabalhos acadêmicos podem ser visitados aqui.

 

Clique para imprimir.

Comente

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *