Drops da Sétima Arte

Por Guilherme Preger

 

No Coração do Mundo. Brasil. 2019.

 

 

No coração do mundo, de Gabriel Martins e Maurílio Martins (2019) é a afirmação de um acontecimento de grande magnitude: no cinema e na cultura brasileira. Este acontecimento é o cinema de Contagem. Este filme se junta a Temporada, de André Novais de Oliveira (2019), e Arábia, de Affonso Uchoa e João Dumans (2018), como algumas das melhores produções cinematográficas nacionais dos últimos anos.

O crítico Ismail Xavier já observou que por mais revolucionário o movimento, o Cinema Novo ainda era a classe média (em geral branca e masculina) filmando o Brasil profundo. Pode ser o Brasil sertanejo ou o Brasil favela, mas em todos esses filmes o cinema foi a busca pela imagem do outro. O “outro” é o subalterno, mas caberia perguntar, como fez a teórica Gayatri Spivak, pode o subalterno falar?

Essa é a tendência ainda de um filme “humanista”, porém branco e idealista, como Central do Brasil (1998). E permanece assim quando as objetivas mudam o foco para as periferias urbanas, num filme emblemático como Cidade de Deus (2002), com sua montagem pop.

Mas em Contagem, cidade de Minas Gerais, na grande área metropolitana de Belo Horizonte, sobretudo com as criações da produtora Filmes de Plástico, o que temos são filmes da periferia filmando e deixando falar a periferia.

Há nisso mesmo um conteúdo estratégico: No coração do mundo abre com a canção BH é o Texas do MC Papo, um rap mostrando os moradores da cidade, alguns deles encenando diretamente para a câmera. A canção diz que Contagem é o “mother fucking Texas”.  A relação com o Estado norte-americano é casual e não é. Seu autor, DJ local de sucesso, diz que o uso dos chapéus entre os habitantes da cidade lhe lembrou o Texas, mas há também uma relação cinematográfica: o filme Minas-Texas, de Carlos Alberto Prates Correia (1989).

 

Foto: divulgação

 

No coração do mundo é com certeza um filme de contexto. A intenção estética de seus diretores foi realmente filmar a vida, o cotidiano, a fala, os problemas e as esperanças dos moradores de Contagem. Há uma mistura entre atores profissionais, como as consagradas Grace Passô, Kelly Criffer, Karine Teles e Barbara Colen, com não profissionais moradores do local, tais como Leo Pyrata, que faz Marcos, um dos protagonistas.

O filme abre com uma cena a princípio romântica: numa praça da cidade, a locutora de um programa de rádio local (vivida por Karine Teles) oferece um presente de aniversário ao rapaz Marcos, dado por sua namorada Ana (Kelly Crifer). Os dois se beijam com música romântica ao fundo, mas o idílio amoroso é subitamente cortado pelo barulho de um tiro.

O tiro é a ponta de um fio narrativo que conduz a história e liga vários personagens. No Coração… é um filme de gênero, mais precisamente um “filme de assalto”. A personagem Selma, vivida por Grace Passô, não é uma pessoa do lugar, mas se estabeleceu em Contagem de passagem, esperando sempre por uma oportunidade de melhorar de vida em qualquer lugar. Personagem nômade, ela circula por várias classes sociais na cidade e lidera a trama que reúne personagens diferentes, entre eles Marcos. Este, ao contrário de Selma, é um personagem totalmente enraizado em seu local, jovem malandro que não estuda nem trabalha, vivendo de bicos, e a princípio parece não visualizar nenhum futuro, embora isso não lhe gere nenhum tipo especial de angústia (que, na verdade, sente o espectador), apenas uma relação tensa com sua mãe que, mesmo idosa, percorre a pé a cidade vendendo essências.

 

Foto: divulgação

 

É do contraste entre esses dois personagens principais que o filme é conduzido, ou seja, na oposição entre partir e ficar. Na cena mais emblemática do filme, Selma, que faz o trabalho de fotógrafa de escolas, fala para a objetiva de Marcos (e dos diretores), emoldurada por um painel com uma paisagem idílica, e diz que o coração do mundo é qualquer lugar que ela possa estar sem preocupações. O coração do mundo é algo como uma utopia, ou mesmo uma atopia: não é nenhum lugar específico, mas um lugar de fuga, onde o bem estar (não provido pelo Estado) pode ser encontrado.

Outro par de personagens que dialoga é composto por Ana (Kelly Crifer), namorada de Marcos, e Rose (Bárbara Colen). A primeira é trocadora de ônibus e cuida de um pai senil; a segunda já foi trocadora, agora é manicure de um salão, mas sonha mesmo em comprar um carro para trabalhar de Uber durante a noite. Ana está presa à cidade como à sua cadeira de trocadora, enquanto o sonho de Rose é ganhar mais dinheiro, mas sem sair necessariamente da cidade. Em torno desse quarteto giram os demais personagens, como o marido de Rose (vivido por Robert Frank). Ele trabalha numa loja de roupa e briga com o irmão que escolheu o caminho do crime e pelo qual pagará um preço. Além desses atores, há as participações especiais de MC Papo, num papel coadjuvante e da funkeira MC Carol. Esta faz o papel de uma ex-presidiária metida no pequeno tráfico que, no entanto, termina o filme com um emprego de cuidadora.

O interessante é que Marcos, Ana e Rose, com seus mesmos respectivos atores, já figuravam no curta-metragem Contagem, realizado em 2010 pelos mesmos diretores, na mesma produtora. Esse curta é a semente do longa-metragem atual. O motivo principal do roteiro do curta é apenas intuído no longa, como se fosse uma vida paralela (na verdade, para se chegar a essa conclusão é preciso ver o filme anterior, de 18 minutos, disponível aqui). Os atores esperaram nove anos para reviverem seus mesmos personagens. No entanto, além dos atores e do ambiente, há algo de comum que une os dois filmes: a cena do casal curtindo romanticamente o sol na laje de casa, numa espécie de praia de concreto urbana, onde é possível viver a tranquilidade efêmera apesar da precariedade do espaço. Como indica o título do curta-metragem, o principal personagem do enredo é a própria cidade.

 

Foto: divulgação

 

A principal virtude dos filmes de Contagem é realizar a radiografia audiovisual do chamado “precariado” brasileiro na fronteira entre trabalhos extremamente precários (e explorados) e o crime. Aí a distinção entre ficção e não ficção parece ser totalmente ultrapassada, assim como a distinção entre lei e crime, ou entre trabalho e não trabalho. Os personagens vivem no distrito de Laguna, que pertence à Contagem, e representa então a periferia da periferia.

É preciso pensar então como se dá também a relação entre esse registro audiovisual hiperrealista e a própria ideia política do cinema. O gênero do filme de assalto tem algo da inevitabilidade trágica e violenta dos filmes de Tarantino. Talvez o tema da antropofagia modernista, que durante tanto tempo marcou a relação entre o filme da colônia com a da metrópole, seja excessivo para caracterizar esse filme. O registro estético produzido pela própria periferia recusa todo idealismo e aposta numa relação mais horizontal e co-criativa. A própria canção do MC Papo que abre o filme parece ser uma afirmação altiva dessa situação de interdependência.

 

Foto: divulgação

 

O filme desafia a invisibilidade abissal dessa periferia. A decisão por filmar filmando-se é um gesto político. A visibilidade produzida é autorreferencial. O mote do filme de assalto, ao ser um pretexto para a história, um verdadeiro mcguffin, agrega e organiza a relação entre os personagens e o ambiente periférico. Há, sem dúvida, uma devoração do mote do filme de ação, mas longe de ser uma linguagem do outro, o assalto, com sua lógica de violência é também uma linguagem do lugar. O filme celebra um internacionalismo periférico e não a relação metrópole-colônia, recusada porque hierárquica e insignificante para os jovens.

As distâncias já não são mais aquelas que cruzam os oceanos. A autorreferência da imagem aponta o fato de que Contagem é o Texas e é o coração do mundo. O Texas, o mundo, o sofrimento, o amor, a violência, o abandono, a vida, a periferia, o trabalho precário e explorado, é tudo Contagem. Há uma urgência no filme de Gabriel Martins e Maurílio Martins que nos conta imageticamente que o cinema está no coração do mundo, aqui e agora. Esta é a definição de acontecimento, aquilo que não tem tempo nem lugar que não seja o seu próprio, o espaço-tempo que a obra mesma inventa.

 

 

 

 

Guilherme Preger é natural do Rio de Janeiro, engenheiro e escritor. Autor de Capoeiragem (7Letras/2003) e Extrema Lírica (Oito e Meio/2014). É organizador do Clube da Leitura, principal coletivo de prosa literária do Rio de Janeiro e foi organizador de suas quatro coletâneas de contos. Atualmente é doutorando de Teoria Literária pela UERJ com a tese Fábulas da Ciência. É colaborador do site de produção poética Caneta Lente e Pincel (canetalentepincel.art.blog). Escreveu sobre cinema para o site Ambrosia.com.br.

 

 

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