Drops da Sétima Arte

Por Guilherme Preger

 

Uma Mulher Alta. Rússia. 2019.

 

 

Uma mulher alta (Дылда), de Kantemir Balagov, é um filme excepcional, dos melhores dos últimos tempos. É duro, amoral e cruel como só os filmes pós-soviéticos conseguem ser. Mas oferece um olhar da era estalinista com sobriedade e justeza. A partir do romance da escritora Nobel Svetlana Aleksiévitch, A Guerra não tem rosto de mulher, o filme reconstrói o período imediatamente posterior à Batalha do Século, em Stalingrado entre russos e alemães, ou entre comunistas e nazistas.

O filme se passa em Leningrado, atual São Petersburgo. Uma mulher alta é Ilya (Viktoria Miroshnichenko), chamada de “Grandona” por suas colegas (uma tradução mais fiel para esse termo que dá título ao filme seria “varapau”). Ilya trabalha como enfermeira num hospital dedicado aos feridos de guerra e é, ela própria, uma ex-combatente. Ferida no front, ela sofreu uma concussão cerebral que eventualmente lhe gera uma paralisia. Trata-se de um efeito pós-traumático, sequela da guerra, que terá uma consequência crucial na narrativa.  Além de seu trabalho, ela cuida de uma pequena criança, Sasha, que inicialmente acreditamos ser seu filho. Muito alta, quase albina, suas características físicas não usuais são logo ressaltadas pelo enquadramento de câmera e no contraste com suas colegas. No entanto, sua singularidade não está em sua estranheza física, mas na condução de seu destino, conforme tortuosos desejos e imprevistas circunstâncias.

 

 Foto: divulgação

 

Após uma tragédia pessoal, que reverbera com a tragédia da própria guerra, Ilya reencontra sua companheira de front, Masha (Vasilisa Perelygina). Saberemos rapidamente que Masha é a verdadeira mãe de Sasha, e que ela retorna para reclamar seu filho. Para superar a tragédia que as une irremediavelmente, elas saem na noite fria de Leningrado para “dançar”, isto é, para encontrar homens e eventualmente fazer sexo. Pelo menos esse é o desejo de Masha, enquanto Ilya parece sofrer de um bloqueio sexual ou um desgosto pelo sexo. Elas se juntam no passeio a dois jovens homens que estão em busca de diversão.

Masha, a outra protagonista da história, torna-se enfermeira do mesmo hospital, e assim descobrimos que, de tanto matar nazistas e se relacionar sexualmente com homens abusadores, ela possui uma espécie de amoralidade nietzschiana, “além do bem e do mal”. Incapaz de engravidar, devido a ferimentos de guerra, decide a qualquer custo ter mais um filho, e se torna disposta a tudo para alcançar seu desejo.

O diretor Kantemir Balagov, de 29 anos, fez um filme com um viés decididamente feminino e feminista: mulheres fortes, homens pusilânimes. Mesmo o dedicado médico chefe do hospital, Nikolay (Andrey Bykov), que toma decisões difíceis para aliviar o sofrimento dos feridos, é incapaz de se impor a Masha. O “namorado” que Masha encontra no passeio parece sofrer de retardo mental ou aleijão moral. Sua mãe, que pertence à alta nomenklatura, é cínica e cruel, enquanto seu pai é um ser calado e inoperante. A cena em que Masha conversa à mesa com a mãe de seu suposto noivo é um dos momentos mais tensos do filme. A dureza entre as duas mulheres é uma resposta à sociedade que emula a igualdade de sexo no front, mas dissimula a assimetria de poder de gênero na hierarquia social. A única exceção de coragem masculina é Stepan, um dos feridos de guerra que, imobilizado da cabeça para baixo, escolhe o direito a uma morte digna. Mas só as enfermeiras do hospital são capazes de assistir os pacientes mais graves em seus derradeiros momentos.

 

Foto: divulgação

 

Mesmo a cena do banho feminino, prototípica fantasia erótica masculina, é filmada com sobriedade. Ele serve na trama para mostrar tantos os ferimentos de Masha, como a feminilidade corporal de Ilya.

Nessa abordagem da amizade entre mulheres, o filme guarda semelhanças com o romeno 4 meses, 3 semanas e dois dias, e o francês La vie revée des anges. A amizade entre as mulheres não é baseada numa complementaridade entre espíritos opostos, mas em certo antagonismo que as estranha em jornadas violentas. Ilya e Masha são mulheres muito diferentes e muitas vezes a relação entre ambas é sublinhada por uma agressividade latente. Se Masha parece usar Ilya para alcançar seu desejo, a “Grandona” parece depender da amiga para ativar sua sexualidade.

 

 Foto: divulgação

 

É antes a sororidade construída no aprendizado da guerra que é mais verdadeira do que a luta em nome de um patriotismo ou uma ideologia. Essa sororidade é, em certa medida, ela também uma luta por sobrevivência. O filme tem a grandeza de não figurar meramente uma ética da sobrevivência, mas uma ética do afeto e do desejo. As personagens querem mais do que apenas sobreviver: elas (e eles, os homens) querem amor e amizade.

Uma mulher alta, de Kantemir Balagov, é afinal um filme russo que reconstitui magistralmente um momento-chave da história soviética. Levando-se em conta que o diretor faz parte de uma geração que nasceu após o fim da URSS, seu filme não é um acerto de contas com o passado, mas busca um entendimento histórico dos sentidos da experiência revolucionária. Ele ganha em não submeter essa história a julgamento ou tampouco romantizá-la, mas em focar no drama humano das personagens. A história está então imbricada em seus corpos feridos e desejosos. É sabido que a batalha contra os nazistas foi vencida pelos soviéticos, definindo os contornos da história do século XX. O filme de Balagov mostra, no entanto, que numa guerra nunca há vencedores.

 

 

 

Guilherme Preger é natural do Rio de Janeiro, engenheiro e escritor. Autor de Capoeiragem (7Letras/2003) e Extrema Lírica (Oito e Meio/2014). É organizador do Clube da Leitura, principal coletivo de prosa literária do Rio de Janeiro e foi organizador de suas quatro coletâneas de contos. Atualmente é doutorando de Teoria Literária pela UERJ com a tese Fábulas da Ciência. É colaborador do site de produção poética Caneta Lente e Pincel. Escreveu sobre cinema para o site Ambrosia.

 

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