Drops da Sétima Arte

Por Guilherme Preger

 

Border. Suécia/Dinamarca. 2018.

 

 

Obra que estreou no Festival de Cannes de 2018 e somente através das plataformas de vídeo por demanda chega ao grande público, Border (Gräns), de Ali Abbasi, é um filme sueco que causou debate e mal-estar por onde passou. Mas parece totalmente apropriado para os tempos pandêmicos em que a humanidade está submergida nos terrores de sua própria existência no planeta.

O filme trata da história de Tina (vivida pela atriz Eva Melander), uma policial alfandegária que trabalha num aeroporto da Suécia. O aspecto assombroso de Tina, ligeiramente andrógino, é devido a uma suposta “anomalia cromossômica”. Tina desenvolveu uma aptidão extraordinária de farejar o odor dos corpos e relacioná-los aos afetos das pessoas. Esse seu dom lhe é de valia em sua profissão, na qual Tina pode detectar, através do faro, a culpabilidade de possíveis criminosos que atravessam a alfândega, como, por exemplo, o caso de um viajante que carrega imagens pedófilas na memória de sua câmera fotográfica.  Esse reconhecimento permite à polícia desbaratar uma rede sueca de pedofilia.

Mas Tina falha absolutamente na identificação de Vore (vivido por Eero Milonoff), cujo aspecto é tão bizarro quanto o dela, mas que Tina acredita guardar algum segredo. Na verdade, Vore, que possui uma compleição masculina, é, na verdade, do sexo feminino, e a incapacidade da personagem protagonista de identificar seu sexo causa-lhe um grande constrangimento na revista. Por esse erro, e por uma secreta sintonia com Vore, Tina lhe oferece abrigo.

Marcada por sua silhueta bizarra, por uma atestada infertilidade, por cicatrizes no corpo, Tina apesar de tudo tenta estar integrada à sociedade: mora com um amigo, tem emprego, visita o pai habitualmente num asilo de idosos, tem a confiança dos colegas de trabalho que admiram e tiram proveito de seu “poder” paranormal. No entanto, a personagem está na “borda” da sociedade normal.

 

Foto: divulgação

 

O caráter limítrofe de Tina é o mesmo do filme de Ali Abbasi. Border é uma obra entre o fantástico e o realista. Saberemos que Tina e Vore são trolls, seres mitológicos das culturas eslava e celta. Os aspectos supostamente monstruosos de suas silhuetas são na verdade naturais. A monstruosidade é, portanto, questão de perspectiva. Efetivamente, Tina e Vore estão mais próximos da natureza do que estão os humanos. Se eles assustam os humanos e os cães domesticados, comunicam-se com raposas e outros animais selvagens de maneira mais direta. Estão muito mais em casa na floresta do que no meio da sociedade.

Border foi bastante criticado, no entanto, pelas cenas de sexo aberrante e pela crueldade. É preciso entender, no entanto, qual a função formal dessas cenas em relação à montagem cinematográfica. O filme apresenta dois mundos que seriam incompatíveis: o mundo dos humanos e o mundo dos trolls. O perspectivismo narrativo traz os dois pontos de vista e como eles parecem inconciliáveis: aquilo que é “natural” num dos lados da “fronteira” é não natural na outra e vice-versa. Aquilo que parece aberrante num dos lados surge como erótico no outro. Essa separação entre mundos, no entanto, é rompida (ou ultrapassada) de diversos modos. Daí, por exemplo, a metáfora “alfandegária” da profissão de Tina e sua participação profissional nessa exata “passagem”.

O espírito transgressivo do filme está justamente nos modos narrativos onde a separação entre mundos é violada. Tina é considerada “infértil” pelos padrões da sexualidade humana. Numa das cenas, o amigo de Tina quer transar com ela e é rejeitado. A questão básica é que Tina não sente desejo entre humanos. Sua infertilidade não é devido a uma anomalia genética como lhe dizem, mas porque ela não está em “casa” na sociedade humana. É Vore que conduzirá Tina a recuperar sua libido própria. Essa libido já estava transparente desde as primeiras cenas em que Tina se banha nua num lago das redondezas. Não havia nada de “errado” com a sexualidade da personagem. Ela só não a encontrava no lugar certo ou melhor: sua sexualidade não tinha “lugar” em sua vida a não ser quando estava sozinha na natureza.

A crueldade se dá em outro modo, dentro do comércio entre humanos e trolls. Ela antes liga do que afasta as duas espécies. Por um lado, há a própria crueldade “aberrante” da sociedade humana, na pedofilia, ou no especicídio, forma mais abrangente de tantos genocídios a que se dedica a espécie sapiens. De outro, há o ressentimento, que não é exclusividade também dos trolls, mas abunda em nossa sociedade. A crueldade é a matéria mesma da guerra e a guerra não deixa de ser um “intercurso” entre as sociedades.

 

Foto: divulgação

 

A guerra é ambígua entre acabar ou manter as fronteiras. Mas a guerra também pode ser infletida para dentro, o que significa que a fronteira é deslocada para o interior da própria sociedade humana. Se Tina hesita na sua relação com Vore é também por sua fidelidade ao trabalho, aos colegas, aos vizinhos, enfim à sociedade da qual faz parte. Em última análise, a decisão de Tina, de ordem ética, é um elemento de sua humanidade. A fronteira não está entre espécies ou entre grupos de indivíduos. A fronteira está no interior da própria individualidade. O nome dessa fronteira é subjetividade.

A potência de Border está na figuração da fronteira e sua transposição da narrativa interior para o ato cinematográfico propriamente dito. A fronteira dos gêneros, completamente transfigurada na representação dos sexos de Tina e Vore, se transplanta para a fronteira dos gêneros estilísticos: a do filme realista e a do filme fantástico. Como na história, o filme de Ali Abbasi cruza frequentemente a fronteira dos gêneros narrativos. É essa ultrapassagem que gera o efeito de choque apontado por tantos espectadores. Em algum momento da trama é revelado que na Finlândia há uma comunidade sobrevivente de trolls que vivem em liberdade. A comunidade é um “enclave” utópico livre de guerras e livre para o erotismo entre os iguais da espécie. A estranheza provocada por Border vem dessa opção estética de nunca apenas “sobrevoar” esses mundos acima de suas fronteiras; ao contrário, a opção da obra é fazer com que todo o filme seja uma habitação da fronteira. Não há nada além da fronteira, o que vale para os humanos e trolls, bem como para a demarcação entre fantasia e realidade: só existe o poder que emana de suas imagens. Além dessa fronteira há apenas a utopia.

 

 

 

 

Guilherme Preger é natural do Rio de Janeiro, engenheiro e escritor. Autor de Capoeiragem (7Letras/2003) e Extrema Lírica (Oito e Meio/2014). É organizador do Clube da Leitura, principal coletivo de prosa literária do Rio de Janeiro e foi organizador de suas quatro coletâneas de contos. Atualmente é doutorando de Teoria Literária pela UERJ com a tese Fábulas da Ciência. É colaborador do site de produção poética Caneta Lente e Pincel. Escreveu sobre cinema para o site Ambrosia.

 

 

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1 comentário

  1. Não sei se coincidências existem. O fato é que quando assisti Border (2018), fiquei tão impactada que escrevi “Sob o microscópio” e hoje ele foi publicado aqui na revista Diversos Afins no mesmo número dessa resenha.

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