Drops da Sétima Arte

Por Guilherme Preger

 

Dead Pigs. China. 2018.

 

 

Uma diretora chinesa de sucesso que é chamada para os Estados Unidos para fazer um filme americano de grande estúdio. Não, não estamos nos referindo à atual ganhadora do Oscar, a diretora Chloé Zhao, de Nomadland. Estamos falando de Cathy Yan, diretora cujo filme de estreia é Dead Pigs (2018). Cathy fez sucesso no festival de Sundance nesse mesmo ano e depois foi convidada para dirigir o filme Aves de Rapina (Birds of prey) do grande estúdio DC Comics. Dead pigs foi lançado agora para a plateia global via plataforma de demanda MUBI. Embora tenha nascido em Xangai, Cathy Yan mora nos EUA. Apesar disso, seu primeiro filme aborda sua cidade e país natal, Xangai. É uma comédia falada em mandarim, produzida com o estado da arte da tecnologia, que traz o cotidiano e os conflitos da China contemporânea da maneira mais franca quanto possível.

Não gostaria de realizar aqui uma comparação entre Nomadland e Dead Pigs, que são filmes quase diametralmente opostos, apesar da coincidência de situação de suas diretoras. A vitória do filme de Zhao no Oscar faz sua obra estar sendo bastante comentada. No caso da obra de Yan, no entanto, apesar da excelência de sua produção, é uma obra bem menos mencionada. No entanto, em termos de geopolítica, no momento mesmo em que voltamos a ingressar em um novo tipo de Guerra Fria econômica entre duas superpotências, esses dois filmes tornam-se de grande importância sociológica e histórica. A única comparação que arrisco é a curiosidade do contraste entre ambos: enquanto Nomadland investiga o nomadismo dos atingidos pela crise econômica americana, Dead Pigs observa, numa grande cidade chinesa, uma das maiores do mundo, o desejo de permanência e habitação, numa sociedade em que, mais do que os habitantes, o ambiente parece velozmente se alterar. Em outras palavras: no primeiro filme, as pessoas se mudam enquanto a sociedade está estaticamente congelada em seu consumismo sem remédio. No segundo filme, as pessoas querem se fincar às suas raízes, mas parecem levadas pela voragem do progresso acelerado.

Dead pigs é baseado em fatos reais: em 2013, centenas de carcaças de porcos apareceram boiando no rio que corta a cidade de Xangai, durante vários dias. Descobriu-se que criadores de porcos estavam jogando seus porcos misteriosamente mortos no rio à noite, clandestinamente. Mortes misteriosas de porcos na China são sempre um caso de apreensão, em função das epidemias. Até os dias de hoje a causa da morte dos porcos se mantém não inteiramente esclarecida. Houve boatos de envenenamento na ração dos animais ou na água do rio, ou de uma misteriosa infecção suína que, no entanto, não se propagou para os humanos. No filme, Wang, um dos protagonistas da história, é criador de porcos e perde toda sua criação no misterioso incidente. Tal como nos fatos verídicos, Wang também se livra clandestinamente de seus porcos mortos. Trata-se de um momento de grande infortúnio para o personagem, pois ele também perdeu todo seu dinheiro, tomado emprestado, na Bolsa de Valores, seduzido pelas perspectivas de enriquecimento especulativo fácil. Wang torna-se assim endividado e é cobrado por suas dívidas pelas gangues chinesas de agiotas.

 

Dead Pigs / Foto: divulgação

 

Wang precisa recorrer à ajuda de sua irmã, Candy Wang, que é a principal protagonista do filme. Ela é vivida pela grande atriz internacional Vivian Wu, conhecida do público desde o Último Imperador, de Bertolucci, nos anos 80. O nome de Candy Wang ressoa com o de Cathy Yan, da diretora, o que não é acidental. Candy é a principal cabelereira de um salão de beleza. Seu lema é que não existe mulher feia, mas apenas preguiçosa. Mas o drama de Candy, solteira, é que ela vive sozinha na casa que pertenceu há décadas à sua família. Havia toda uma vizinhança com quem ela cresceu, porém agora sua casa é a única que resta, isolada no meio de um aterro sanitário de destroços, num imenso terreno que foi comprado por uma empreiteira chinesa. Esta empresa planeja, em parceria com investidores americanos, construir no lugar um empreendimento residencial temático, como se fosse numa Espanha romanticamente andaluza. A casa de Wang é a única que não foi vendida e ela se recusa não só a vendê-la, mas a se mudar do lugar onde nasceu e cresceu, mesmo degradado. Acontece que seu irmão está endividado e precisa que Candy venda a casa para pagar suas dívidas, sob o perigo de pena de morte nas mãos da gangue de agiotas. E aí está criado o conflito de família.

Há também o jovem Wang Zhen, filho de Wang e sobrinho de Candy. Ele trabalha num restaurante de luxo em Xangai, porém mente a seu pai que é um jovem bem sucedido. Zhen se apaixona pela jovem rica Xia Xia, que é filha de um milionário chinês. Esta sofre um acidente de carro ao atropelar um vendedor de melancias. Ela pertence à classe dos novos ricos chineses, cujo destino é estudar fora, e que vivem uma vida de luxo consumista num país comunista. Com Wang, Candy e Zhen está formado o núcleo familiar da trama.

Uma das grandes virtudes da narrativa é entrelaçar à vida desses personagens os principais dramas das imensas transformações da China contemporânea. Wang é um criador de animais que é ao mesmo tempo um jogador da bolsa de valores. Ele está entre a vida rural e urbana, sendo o liame entre os dois polos da economia chinesa. Ele se diverte ao comprar óculos de imersão virtual 3D, ao mesmo tempo em que gosta de estar com amigos em jogos de tabuleiro tradicionais chineses. Sua falência é também a destruição de um estilo de vida tradicional popular, espremido entre as dívidas financeiras e as cobranças mafiosas de agiotas. Candy, como dona de um salão de beleza, a cada manhã reúne suas funcionárias para a tradicional dancinha de exaltação nacionalista. Ela é solitária e suas principais companhias são as pombas que alimenta em seu viveiro. Assim como seu irmão é vítima da especulação financeira, Candy é vítima da especulação imobiliária. Ela não quer deixar o lugar em que criou raízes e que se vê agora degradado. Já Zhen é um jovem que quer subir de vida, mas se vê às voltas com as grandes diferenças de classe que surgem num país outrora igualitário. Essas diferenças de classe interferem não só no seu orgulho (pois é humilhado por clientes ricos), mas também em sua vida amorosa quando se apaixona por uma jovem que é bem mais rica e que já tem valores bem diferentes.

Dead Pigs desenvolve inicialmente uma montagem vertiginosa entre esses mundos, de modo que o espectador também se vê tão desorientado quanto os chineses de Xangai. O tom é de comédia, porém ácida e auto-irônica, muitas vezes burlesco. Nisso, um dos personagens é também importante. É o arquiteto americano Sean. Ele está na cidade como parceiro dos chineses para a construção de condomínios residenciais temáticos. Sean é um romântico da arquitetura, mas os chineses querem o espetáculo, a simulação e a ostentação que julgam características tipicamente americanas. Os chineses querem ser melhores do que os americanos no próprio sonho americano. O filme sugere que a guerra comercial entre americanos e chineses esconde parcerias e acoplamentos mais subterrâneos ou menos aparentes. Numa das passagens do roteiro, Sean tenta uma abordagem mais “humanista” para justificar a desapropriação dos terrenos antigos para a construção de novos condomínios, mas é como se ele estivesse se expressando numa linguagem desconhecida e quase poética, e o resultado é uma situação totalmente constrangedora e fora-do-lugar, mas que inesperadamente funciona.

 

Dead Pigs / Foto: divulgação

 

Apesar do tom afetivo, a obra de estreia de Cathy Yan é bastante corajosa quando traz à cena os principais dilemas da vida chinesa que ambiciona se tornar a nova superpotência global. O filme nada censura sobre os reais problemas dos chineses de Xangai, tendo que se ver com a violência de máfias, a iminência cotidiana de uma nova epidemia, a crescente divisão de classes, e a soma das especulações financeiras e imobiliárias que estão intimamente conectadas, como o filme sugere. O pano de fundo histórico para todos esses problemas é o grande “Salto para Frente” do crescimento chinês, o maior de toda a história da humanidade. Na cena clímax do filme, em torno de um conflito que parece insolúvel, a saída do enredo é apresentar uma canção popular chinesa cantada por quase todo o elenco. O lirismo da canção pacifica e “supera” o conflito. Nesse momento de metalinguagem, o filme se volta para si mesmo, mas esta saída não é a mais fácil. Ela é antes a expressão de que os gigantescos problemas que os chineses comuns enfrentam diante das transformações incessantes não têm mesmo como ser resolvidos no plano individual. É nesse momento, ou nessa encruzilhada, que a potência da linguagem artística intervém. Ela não cria uma situação fantasiosa na qual os problemas magicamente desaparecem. Ela recorre e acentua o paradoxo da situação para mostrar que, em vez de simplesmente negar o conflito, é preciso usá-lo como a fonte que impulsiona tanto a História, com letra capital, quanto a pequena história individual e invisível, real ou imaginária, das pessoas que são exatamente comuns porque se reconhecem num momento de beleza compartilhada.

 

 

Guilherme Preger, carioca, é engenheiro e escritor, doutor em Teoria Literária pela UERJ (2020). É autor de Capoeiragem (7Letras, 2013) e Extrema Lírica (Oito e Meio, 2014). É organizador do Clube da Leitura, coletivo de prosa literária do Rio de Janeiro, atuante desde 2007 e foi editor das quatro coletâneas do Coletivo. É autor do blog Fabulação Especulativa e seus trabalhos acadêmicos podem ser visitados aqui.

 

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1 comentário

  1. Espero que o filme seja tão bom quanto a crítica sugere !

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