Drops da Sétima Arte

Por Guilherme Preger

 

A febre de Petrov. Rússia/França. 2021.  

 

 

O filme de Kirill Serebrennikov, ainda não lançado nas salas brasileiras ou nas plataformas mais conhecidas, participou do prêmio do festival de Cannes de 2021, na concorrência de filmes incômodos, tendo afinal sido premiada nesse ano a obra Titane da jovem Julia Ducorneau, um filme com o qual A febre de Petrov tem bastante semelhança na radicalidade de seu desconforto estético. Para o mais glamoroso dos festivais de cinema globais, que ocorreu no meio do período pandêmico, esses filmes fazem aflorar sentimentos patológicos para as audiências confinadas e socialmente distanciadas por máscaras cirúrgicas e álcool gel.

Serebrennikov é um diretor russo, de cinema e teatro, bastante premiado e com problemas com a justiça de seu país por suas posições políticas. Ele foi contra a anexação da Crimeia e isso acabou resultando num processo no qual um orçamento público obtido por ele foi contestado judicialmente e o diretor acabou sendo condenado à prisão domiciliar, depois revogada. Porém, suas posições em prol do movimento LGBT e sua condenação à recente invasão militar da Ucrânia acabaram fazendo com que perdesse seu prestigiado cargo de diretor do Teatro Gogol de Moscou. Tudo isso demonstra que, nesses tempos de guerra, é importante assistir à produção russa de seus artistas, verdadeiras antenas irradiantes dos anseios populares.

É difícil resumir o feérico roteiro de A febre de Petrov. Petrov (vivido pelo ator Semyon Serzin) pode ser um mecânico de oficina, ou um cartunista que desenha em HQ a vida de um mecânico, ou pode ser ambos. Ele aparece tossindo e fungando num ônibus na cidade de Yekaterinburg lotado num tempo gelado. A história se passa em algum momento dos anos 90 na Rússia pós-soviética. Os passageiros reclamam da traição de Gorbatchov e Yeltsin. Ao sair do ônibus, revoltosos entregam uma metralhadora na mão de Petrov para atirar em cidadãos burgueses numa espécie de fuzilamento sumário. Não sabemos se essa cena é real ou não. Aliás, essa é uma das características do filme: a completa indeterminação entre o que é ficção ou o que é a imaginação alucinada de Petrov, cujo estado febril o deixa em delírios.  Sabemos que ele está separado de sua mulher bibliotecária (vivida pela atriz Chulpan Khamatova, conhecida por sua participação no filme Adeus, Lênin!), com quem tem um filho que também está febril. Sua mulher sofre de ataques de insanidade e espanca um poeta na biblioteca cujo poema a desagradou. Depois, com os olhos revirados tal uma alienígena persegue outro estranho do ônibus para assassiná-lo com uma faca. Esta assassina serial sente ainda vontade de degolar seu próprio filho, dela com Petrov, porém não o faz. Mas não sabemos se esses instintos assassinos de sua mulher talvez sejam outro delírio de Petrov.

 

Cena de A febre de Petrov / Foto: divulgação

 

Em outros momentos, Petrov se encontra com um amigo dramaturgo e encena uma de suas peças, depois vai para a casa dele e o ajuda a se suicidar, puxando o gatilho da arma. Depois se encontra com um amigo, que é pai de uma criança na mesma escola do filho de Petrov. Ambos estão numa caminhonete que serve de rabecão. O nome do amigo é Hades, o mesmo do inferno grego. Eles bebem junto na caçamba do carro junto a um caixão onde está um morto. Petrov está sempre muito mal e sentimos angústia por seu estado de saúde. Ele toma uma aspirina antiga, da era soviética que está fora do prazo de validade. Depois vai para casa de sua ex-mulher, a mesma bibliotecária assassina e descobre que seu filho está com a mesma gripe e com febre bastante alta. Porque o filho não acorda ele parte com pressa para um hospital, mas o carro quebra no caminho e desesperado ele pede ajuda a alienígenas que abduzem seu filho e o curam; assim, na manhã seguinte o filho está saudável para ir numa festa de escola com seu pai. E é na festa de escola do filho que, além de reencontrar seu amigo Hades, Petrov tem encontro com a “dama de mão branca”, que lhe lembra sua mãe. Petrov sonha (ou delira) com ela nua fazendo amor com seu pai e depois lhe levando a uma festa na escola, exatamente como ele faz com seu filho. E por aí segue a história, delirantemente.

Este roteiro fantástico e insólito pode às vezes sugerir um novo tipo de surrealismo, mas não é exatamente esta a estética utilizada por Serebrennikov. É antes um filme cheio de ruídos com uma trilha sonora entre o punk e o metal hard core. Há algo exatamente de hard core, do cinema brutal do servo Emir Kusturica. Brutalismo é uma definição melhor para esse filme que envereda por uma coleção de diferentes registros cinematográficos. Há, por exemplo, o farto uso do plano-sequência, uma estética da qual o cinema russo tem vários experimentos extraordinários. Há muitos travellings, câmera na mão com movimentos vertiginosos, cores exuberantes contrastando com sequências em P&B. Há também vários flashbacks e em muitas cenas os espectadores não conseguem reconhecer a temporalidade narrada. E há muitas cenas que se passam dentro do transporte público russo, seja ônibus ou caminhonetes, com a câmera registrando o cotidiano dos cidadãos russos no período imediatamente após a dissolução da URSS.

 

Cena de A febre de Petrov / Foto: divulgação

 

É um filme de dissolução. A dissolução soviética de um lado, mas também a do cotidiano do capitalismo bruto, sem mediação do Estado, que falido então se decompunha. Por outro lado, essa perspectiva “representativa” do filme não deve nos iludir. Lançado em 2021, em meio ao caos pandêmico, a gripe do personagem e seu estado febril nos remetem a outro contexto bem diferente. O paroxismo alucinatório do roteiro ocorre dentro de um ritmo ofegante, “à bout de souffle”, para lembrar o filme de Godard. Há um clima ficcional “asfixiante” e doentio que remete os espectadores ao mundo contemporâneo da pandemia e da guerra. E, embora a invasão da Ucrânia (condenada pelo diretor) seja posterior à realização do filme, o caos da realidade de Petrov parece também prefigurar a situação do povo russo que é levado à guerra por questões históricas que confusamente estão relacionadas ao período de decadência pós-soviética. Questões políticas e sociais não resolvidas emergem na ficção feérica de A febre de Petrov.

O cinema, embora seja a mais mimética das artes, não representa nada além de sua própria realização como imagem e movimento. O que ele propicia, como toda arte, são os meios nos quais os desejos e emoções coletivos, inclusive o medo, podem se figurar. O filme russo é essa trama complexa na qual a diferença entre realidade e fantasia se esgarça na passagem através da doença do protagonista e o estado febril da sociedade. A febre de Petrov é o portal entre a alucinação pessoal doentia e a história coletiva patológica. O mal-estar da civilização é comum a Petrov, a Serebrennikov e a nós espectadores.  E a conclusão é que a “realidade” retratada no filme é ela mesma inteiramente ficcional e não permite nos situar historicamente. Assim, a fronteira entre fake news, teorias conspiratórias e os fatos sociais também é rasurada. E daí os espectadores percebem que não estão vendo um filme sobre a passagem histórica entre a URSS antiga e a Rússia atual, mas sim com uma obra construída com as vibrações nervosas, febris e paranoides da vida contemporânea nas quais estamos todos jogados.

 

 

 

Guilherme Preger, carioca, é engenheiro e escritor, doutor em Teoria Literária pela UERJ (2020). É autor de Capoeiragem (7Letras, 2013) e Extrema Lírica (Oito e Meio, 2014). É organizador do Clube da Leitura, coletivo de prosa literária do Rio de Janeiro, atuante desde 2007 e foi editor das quatro coletâneas do Coletivo. É autor do blog Fabulação Especulativa e seus trabalhos acadêmicos podem ser visitados aqui.

 

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