Pequena Sabatina ao Artista

Por Fabrício Brandão

 

A primeira coisa que nos vem à cabeça quando pensamos em maturação é todo um conjunto de mecanismos e processos que dão suporte ao ato contínuo de um amadurecimento. Ao longo da vida, somos tomados, mesmo que forçosamente, pela necessidade de empreendermos passos decisivos rumo a algum tipo de evolução. E evoluir seria apenas uma das facetas da maturidade, embora nem sempre signifique uma renovação completa daquilo que supomos, sentimos ou desejamos. É de se desconfiar, então, que a transformação substancial do ser humano surge à custa de rupturas tanto no campo do pensamento quanto da ação.  No que se refere à literatura, alguns percursos próprios se apresentam. Um deles está na capacidade que um determinado criador tem de vislumbrar sua obra como uma janela de projeção para o mundo. É o caso de gente como a escritora Ana Peluso, que, profundamente envolvida pelas marcas de seu tempo, faz de sua expressão literária um voraz instrumento de lucidez.

Companheira inseparável do espanto e do estranhamento, Ana faz com que sua poesia transite por um lugar onde muita coisa pode ser posta à prova. Desde os sentidos mais elementares até os mais complexos, a autora revela-se intensamente movida pelos signos da inquietude. Seus versos movem moinhos de indagações, chacoalham as fronteiras do óbvio e, ao mesmo tempo, refletem uma sutil busca pela delicadeza oculta das coisas.  Sem sucumbir a bandeiras da moda ou apelos ideológicos voláteis, essa paulistana se vê agora diante de seu primeiro rebento poético, o livro “70 Poemas”, publicado através da Editora Patuá.

Nascida em 1966, Ana Peluso, além de escritora, agrega em sua trajetória os perfis de jornalista, editora e web designer. Integrou diversas antologias, dentre as quais: deZamores, pela Editora Escrituras em 2003, resultado do encontro de alunos de diferentes oficinas literárias virtuais do SESC SP, sob orientação do escritor João Silvério Trevisan; É que os Hussardos chegam hoje, também pela Editora Patuá, 2014; e de Hiperconexões : Realidades Expandidas, primeira antologia poética sobre o pós-humano, com organização do escritor Luiz Bras, pela Editora Terracota, 2014.  Tem textos publicados em diversas mídias impressas e eletrônicas, como é o caso do extinto jornal O Pasquim, revistas Coyote, Germina, Musa Rara, Cronópios e outras mais. Aqui na Diversos Afins, Ana é uma velha conhecida que, tendo participado com seus escritos de várias edições, agora retorna à casa para falar um pouco sobre o seu momento de saberes e sabores em torno do nascedouro de seu primeiro livro. Como se não bastasse, desfila também algumas pungentes opiniões acerca do laborioso e nada facilmente exprimível ato de escrever.

 

Ana Peluso

Ana Peluso / Foto: arquivo pessoal

 

DA – Sua trajetória é íntima das palavras, sobretudo pelas feições de jornalista, editora e escritora. Depois de um bom tempo, seu primeiro livro vem ao mundo.  Quais travessias foram determinantes nesse lapso temporal? 

ANA PELUSO – Eu não chamaria de travessia o que me levou a publicar, mas de incursão interna. Hoje em dia se escreve muito para o outro, para agradar o outro, seja esse outro o mercado editorial, um amigo poeta, um editor de revista, de jornal, ou até um crítico. A minha travessia se travestiu de incursão porque escrevo, antes de tudo, para mim mesma. Sob esse prisma, e de um ponto de vista meramente material, talvez eu seja egoísta, mas não acredito na arte que não dialogue antes de tudo com o interior do artista, com seu mundo particular, que, por sinal, é vasto. Caso contrário, ele ainda não é um artista de fato, mas alguém que necessita da atenção dos demais, e talvez por isso se vê tanta gente escrevendo igual a tanta gente. Em muitos casos, é natural que, ainda que o poeta tenha optado por trilhar esse caminho a que me propus, a obra chame atenção, mas aí a atenção é mera consequência, e não o estopim para que a arte aconteça, porque para mim é necessário que ela se distancie do criador a ponto de pertencer aos demais, e, ao mesmo tempo, que ela se mantenha como um mundo muito particular ao criador, muito pessoal e peculiar. Se o leitor encontrar o objeto da criação com outras feições, melhor. Sempre digo que “a terceira margem de um livro é o leitor”, justamente porque a primeira e a segunda pertencem ao autor, pelo diálogo interno que precisa acontecer para ele poder chegar ao ato da criação. Como se fôssemos híbridos, é necessária a contradição interna, pessoal, uma segunda leitura feita, talvez por alguma camada da consciência a que não temos acesso reconhecido, mas que está lá, apta a esse diálogo. Eu acho que todo bom autor é dialético por natureza.
Ai das coisas que não se contradizem.

 

DA – Em “70 Poemas”, há um vasto painel de olhares e percepções que não congratulam com o estado de coisas em que vivemos. O mundo sempre foi um lugar estranho? 

ANA PELUSO – Acho que sim. Eu poderia responder que fizeram do mundo um lugar estranho, mas se a gente imaginar o homem das cavernas e sua luta pela sobrevivência, vai ser obrigado a concordar que o mundo só é estranho à sensibilidade de alguns homens. Matar um semelhante pela supremacia da tribo é tão apavorante quanto administrar a desigual distribuição de renda. Para mais além, o mundo é tão estranho, que nascemos berrando, o que não foi exatamente o meu caso, mas não me pauto jamais pelas exceções, até porque o “nascimento de um natimorto” deve ser infinitamente mais doloroso. Pena que não me lembro. Adoraria narrar uma ressuscitação.

 

DA – Sua poesia tem uma marca substancial, que é uma atitude desperta e incomodada diante da vida. E você consegue equacionar as doses sem se perder em desvios ideológicos.  Em que medida o caos interior é um aliado de quem cria?

ANA PELUSO – O que você chama de caos interior, e eu de infinito interior, é matéria-prima. E tem uma ideologia lá dentro, sim, só que ainda desconhecida. Sem contar que tudo o que fazemos, fazemos por um ideal.

 

DA – No sentido lato da palavra, o seu ideal faz com que sua poesia seja algo engajada?

ANA PELUSO – Se há engajamento, é orgânico, não panfletário. Não adianta levantar uma bandeira se quem a pega não distingue cores. Então, a gente enterra a mão e fertiliza uma raiz interna. É como dizer ao coração porque o sangue corre nele, fazer pele falar com pele, é um engajamento sutil, quase impossível de um ponto de vista prático, racional. Mas é uma poesia feita de perguntas.

 

DA – É interessante quando você diz que escreve para si mesma. Esse pensamento parece colocar criador e leitor numa situação de autonomia compartilhada, através da qual cada um demarca seus territórios de vivência dentro de uma determinada obra. Leitores são seres realmente livres?

ANA PELUSO – Eu tenho que escrever para mim mesma. Para quem mais eu poderia escrever no momento da escrita? A quem o poema deve agradar de pronto? Escrevo sobre/tudo para mim mesma. E, sim, pode chamar isso de autonomia compartilhada (excelente termo), a questão é que para mim, como disse acima, o leitor é sempre a terceira margem de um livro, não adianta eu escrever poesia achando que o texto chegará aos olhos do leitor na forma que eu penso ter escrito a poesia, e, ainda, se chegará como poesia. Eu não gosto do óbvio, apesar de estar trabalhando em alguns textos óbvios, eu gosto de mistério, do que aquelas linhas podem me proporcionar de possibilidades, novidades. Recriar é laborar diretamente com a novidade, é rever, redizer. Quando escrevo uma frase que é minha por epifania, mas cuja alma, a ideia, pertencem já a alguém, digo que é do “dito-redito”. Também gosto de literatura de corpo honesto. É muito tentador dizer o que já foi dito como se não se visse que já foi dito, ou se fingisse não ver, mas é feio, é pequeno. A não ser que o autor desconheça mesmo a autoria – essas coisas acontecem – trata-se de um mecanismo de auto-engano voluptuoso. E um escritor não pode carregar um peso desses. Ele já carrega o mundo, na vertical, das costas para a cabeça. Aí é peso demais, e ele acaba largando o mundo, e ficando com o auto-engano.

 

Ana Peluso / Foto: arquivo pessoal

 

DA – Hoje presenciamos a aparição cada vez mais frequente de autores desembocando suas expressões em diversos meios. No seu entender, há um novo espaço de concepção criativa surgindo? Podemos falar em uma nova geração?

ANA PELUSO – Sim, acontece um movimento feito de outros movimentos, e que vivencia a arte, a própria escrita, de forma plural e constante. Acho que podemos falar em uma geração de gerações. É extremamente rico o momento. Cria-se convergência para um ponto comum: o reconhecimento de que somos vários, e somos variados, mas de forma alguma isso pode equivaler à total qualidade.

 

DA – Vez por outra, percebemos discursos inflamados numa defesa bastante firme da tradição literária. Apesar dos novos tempos instaurarem outras perspectivas, o purismo subsiste. Não é um exagero imaginar que tradição e modernidade não podem se harmonizar?

ANA PELUSO – Acho que tem que existir harmonia, sim. Reconhecer o diferente faz parte da prática da vida, mas por outro lado entendo os puristas, há que se resguardar uma certa tradição. Nem toda arte, nem toda literatura, será exatamente a mesma com o decorrer do tempo. O novo sempre surge, e sempre surge subvertendo o paradigma, mas acho de bom tom que os tradicionalistas estejam de olho. Nem tudo é mar só porque é água. Eu mesma não sei até hoje se o que escrevo é poesia de fato. Talvez comparado ao rigor da tradição, não, mas há um trabalho com a palavra, há uma preocupação em criar um universo poético, ou seja, não se trata de prosa na vertical. Mas isso, de trabalhar uma linguagem (mais) carregada de significados (Pound), não coloca ninguém no patamar de poeta, ou mesmo de escritor. Ao mesmo tempo em que há escritores de correntes tradicionais sem verve, há novatos que operam fora dos paradigmas tradicionais com um brilho literário inquestionável. Perceber e reconhecer isso é o que falta.

 

DA – Há quem defenda uma “fronteirização” da literatura. Nesse ínterim, bandeiras de gênero são erguidas, a exemplo de distinções criadas em torno do que seja literatura gay, feminina, dentre outras. Mais do que nichos de afirmação, essas ações não seriam ilusões de uma frágil tentativa de inclusão?

ANA PELUSO – Não acho que seja “frágil tentativa de inclusão”, mas tentativa de inclusão, e não é necessária. A obra fala pelo autor, com ou sem bandeira, de gênero, cor, classe social, mas aí é preciso ver se a luta é pela inclusão da literatura ou da classe. E isso é ponto relevante a ser apreciado porque dialoga com a história, com o momento histórico, que é de carnaval e toda fantasia tem sua cor, e quer se mostrar. O que não pode acontecer é o poeta engajado em uma causa ceder aos interesses políticos. Por mais política que seja a sua postura, com a vida até, a partir do momento em que a obra se torna um veículo meramente político que não seja de oposição, deixa de ser carnaval e a marcha é outra.

 

DA – Como ser de espanto que é, o que você não endossa na dita pós-modernidade?

ANA PELUSO – Se você fala da pós-modernidade no campo das artes, endosso tudo. E falo de arte, não de entretenimento. Se você se refere ao campo de ação do homem comum, me preocupa a falta de interesse pelo que está realmente acontecendo. E não está acontecendo direita e/ou esquerda, está acontecendo nesse exato instante o controle total do ser humano pelos mais variados tipos de comando. Desde a escravidão devotada voluntariamente, vício já na tecnologia, como a implantação de chips no pulso de cidadãos norte-americanos para validar o Obamacare, até as mulheres muçulmanas que vivem sob uma burca, passando pelas protestantes do “Cinturão da Bíblia”, nos EUA, e seus maridos violentos, até o controle do que eu devo ou não assistir na tv, ler nos livros, e ouvir nos discos. Eu não endosso o controle. A liberdade já é produto da utopia, ninguém precisa lembrar disso a todo instante.

 

DA – Somos incorrigíveis?

ANA PELUSO – Sim, para o bem e para o mal.

 

DA – Saberia dizer o que a literatura espera de você?

ANA PELUSO – Não, não saberia dizer, mas sei o que eu espero de mim em relação à literatura. Gostaria de ter tempo para escrever mais e melhor. E para poder levar adiante projetos antigos, como escrever para crianças. Também gostaria de ter fôlego, tempo e meios para me dedicar a um pequeno romance. Se eu tivesse condições, só escreveria. O livro ’70 Poemas’ não contém nem 1% do que eu tenho a dizer, a escrever. Mas infelizmente a literatura no Brasil é um artigo de luxo, principalmente para o escritor, e, sobretudo, se ele é obrigado a exercer outras funções que o mantenham como um bom pagador perante os banqueiros e o mercado. É uma via de mão única: ou se escreve verdadeiramente, e se come pão com água, ou se paga as contas, e se escreve pouco, muito pouco o que se tem a escrever. Ouvi certa vez de uma acadêmica em Letras: “Você é muito boa, mas não tem pé de meia”. Aquilo foi um choque para mim. Porque ela está coberta de razões. Não dá para parar um poema para dar sequência a um trabalho, por pura necessidade, e voltar ao poema depois com o mesmo espírito. O capitalismo é o maior assassino de pessoas no mundo, incluindo os escritores. Vejo muitos autores vivendo puramente da literatura com oficinas, workshops, palestras e performances, mas comigo não é assim que funciona. A literatura, para mim, é uma arte feita principalmente de burilamento e silêncio. Eu não teria cabeça para dar uma oficina e voltar a um texto em seguida. Seria como parar um poema para dar andamento num trabalho qualquer, quando a própria literatura já é um trabalho, que exige muito da gente. Só falta o mundo reconhecer isso.

 

 

 

 

 

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