Gramofone

Por Fabrício Brandão

 

LUEDJI LUNA – UM CORPO NO MUNDO

 

 

Qual é o nosso verdadeiro lugar no mundo? Certamente somos seres capazes de refletir sobre nossa própria condição em meio a tantas demandas e atravessamentos cotidianos. O fato é que temos essa possibilidade nas mãos, mas nem sempre o fazemos de modo a compreendermos quem realmente somos no complexo jogo da vida. Quando tal conexão com a realidade é negligenciada ou perdida, estamos distantes de nós mesmos e dos laços que podemos estabelecer com nossos semelhantes, sobretudo no que toca ao entendimento das diferenças.

De algum modo, nosso corpo é um instrumento de afirmação do ser/estar no mundo. E não há como fugir disso. Podemos ser o todo orgânico que, aliando mente, alma e fenótipo, se projeta ao ambiente universal das experiências sociais proferindo mensagens que intentam demarcar o território inalienável de nossa identidade. Diante do que falamos e executamos, temos potência quando alçamos nossas ideias em meio ao vento que dispersa vozes, este senhor que carrega as mensagens de um lado a outro das relações humanas, antevendo reações ou sendo tomado pelas surpresas de quem acolhe ou até mesmo rechaça os sinais emitidos. Paira sobre nós a noção de que falamos não apenas para nós mesmos e, a todo tempo, o exercício da compreensão da alteridade se impõe como desafio permanente.

Diante da vastidão de cenários que a vida nos apresenta, pode ser que não nos encaixemos em nada que signifique reduzir a níveis rasos demais nossa inteligência e coração. Ninguém passa impune pela vida em se tratando de mostrar sua face verdadeira. No esteio da voz que clama por se apresentar desnuda, haveremos de encontrar amparo em alguém como Luedji Luna, artista que nos provoca a repensar a responsabilidade que temos diante dos caminhos que escolhemos, frente a frente com o Outro que nos apresenta o vigor da diferença, ritmo pulsante de individualidades que nem sempre se conciliam naturalmente.

Parece ser cada vez mais necessário que alguém venha a nos lembrar que existir é colocar sempre em voga o entendimento de nossa trajetória, principalmente o que desejamos profundamente para nós mesmos e para os outros. Diante disso, temos algo em mãos, o primeiro disco de uma cantora e compositora baiana cuja trajetória é deveras promissora. Um Corpo no Mundo, eis o nome de batismo que, apenas sendo pronunciado, já é capaz de sugerir uma miríade de possibilidades. E a canção homônima ao título do álbum é uma preciosidade a definir o espírito do trabalho. Fala de ancestralidade, do lugar do sujeito no mundo, da condição de quem toma posse da própria existência sob a égide de uma marcante herança cultural. O indivíduo que fala por si, constrói suas rotas, afirma seus caminhos, seu rosto, mesmo que não queiram alguns, mesmo que outros se oponham e insistam em restringir a liberdade de quem deseja transitar pela vida sendo o que se é. Um corpo sem amarras. “Je suis ici”, canta Luedji num sonoro marco presencial de quem, lutando contra as negativas e contra a invisibilidade, insiste em dizer que está aqui. “Je suis ici, ainda que não queiram não/Je suis ici, ainda que eu não queira mais”. É o ser também dizendo que quem pode até mesmo determinar o seu não lugar no mundo é ele próprio, e mais ninguém.

Ao adentrarmos pelas faixas do disco, notamos que fica extremamente difícil eleger algo que seja um destaque isolado e, portanto, superior às demais escutas. Tudo demonstra se encaixar numa proposta que concilia os imperativos da lucidez com as vivências de uma contemplação leve e capaz de escutar o coração sem denotar mais do mesmo.

 

Luedji LunaFoto : Danilo Sorrino

 

Banho de Folhas é uma dessas canções que tomamos como bastante representativa no que se refere a mostrar quais referências são caras ao álbum. A busca pelo Outro em meio à cidade que esconde rostos diversos na multidão vem luxuosamente contemplada pela força mística dos ritos africanos que purificam e protegem os caminhos da procura.  Em Asas, vigora uma presença poética do vento, daquele que aponta rotas para quem se permite. A canção funciona como uma espécie de prece para que tudo se ordene por dentro. Mesmo advindo tempestades, há possíveis renovações, acalmando sentimentos, engendrando bons presságios.

Noutra porção do disco, mais precisamente em Iodo, Luedji deixa aflorar a consciência de um corpo político que se projeta em meio às intempéries cotidianas assomadas pelo desrespeito às mulheres, marcantemente as negras, pobres e homossexuais. Nela, há o clamor e o espanto que se insurge contra o rolo compressor de uma barbárie teimosamente cotidiana e naturalizada, aquela que violentamente nega a humanidade plena do Outro. “Eu sei ser/Trovão/E nada/Me desfaz”, arremata a voz que não se subalterniza.

“Quem vai pagar a conta?/Quem vai contar os corpos?/Quem vai catar os cacos dos corações?/Quem vai apagar as recordações?”, entoa Luedji em Cabô, diante do dizimar de um povo que se materializa em estatísticas. São questionamentos que nos provocam e assombram. E o cinismo com o qual temas como a violência contra o pobre e o negro são tratados atualmente aparece travestido no perene e tão danoso costume de relativização dos fatos.

Dentro Ali é uma forma sublime de falar de amor, sem incorrer nas obviedades do sentimento. Predominam nela gestos simples que reformulam a rotina da vida, equilibrando fardos e depositando esperanças no desejo mais sincero e puro de que uma leveza consolide sua morada em meio aos dias. Ao mesmo tempo, a vontade aqui presente é a de compartilhar a vida com o Outro com menos peso possível. Já Notícias de Salvador vem com a referência das memórias, duma ancestralidade que remonta a afetos e que impulsiona para os dias futuros. “Essa é a sina de nós todos/Janta, sobremesa, guerras e acordos de paz/ Plantar, regar, colher/Monossílabos de agouro, infernos astrais”, diz a canção conformando um espaço de ação diante das dificuldades da vida com o aconselhamento maternal que nos impele a atar os nós.

Um Corpo no Mundo é um belo começo de caminhada. Valioso por demais sob a ótica do discurso ali contido, mas também pelos elementos rítmicos e percussivos que delineiam seus arranjos. Não há melhor forma de se mostrar ao mundo do que falar de si, suas crenças, esperanças, do seu entorno e do que está além dele. Não há nada de mais verdadeiro do que mencionar que se é beleza e dor ao mesmo tempo. Lembraremos sempre de Luedji Luna a partir de agora.

 

 

Fabrício Brandão confessa que, definitivamente, não consegue sobreviver sem arte. Por isso, atira-se a livros, discos e filmes com o sabor perene da primeira vez. Por isso, edita a Revista Diversos Afins, é baterista amador e, atualmente, mestrando em Letras pela UESC, aliando Literatura, Comunicação e Cultura. 

 

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