Gramofone

Por Larissa Mendes

 

TAGUA TAGUA – INTEIRO METADE

 

 

“Se eu nunca vir você de novo
Eu sempre vou levar você
dentro
fora
na ponta dos meus dedos
e nas bordas do meu cérebro
e em centros
centros
do que eu sou do
que restou”.
(Charles Bukowski)

O Modelo Kübler-Ross aponta que os cinco estágios do luto compreendem: negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. Nem sempre as etapas seguem exatamente esta ordem, podendo haver oscilação entre os estágios, que inclusive podem ocorrer de forma simultânea. E o que é o fim de um relacionamento senão uma experiência de morte? Atualmente, porém, a positividade tóxica parece tentar impedir o “estado de não estar bem” e sugere que na manhã seguinte a gente vire a página e faça a fila andar. O produtor musical, instrumentista e ex-vocalista da banda gaúcha Wannabe Jalva, Felipe Puperi, não é o primeiro a transformar seu período de luto (profissional , geográfico e amoroso) em arte, porém muito bem o fez normalizando-o como uma etapa necessária para a transmutação gradual das emoções.

Tão logo trocou Porto Alegre por São Paulo, em 2017, Felipe formou seu projeto solo denominado Tagua Tagua, referência ao lago que banha o pueblo de San Vicente de Tagua Tagua, no interior do Chile, berço dos primeiros povos sul-americanos. Cantando dessa vez em português – curiosamente as composições do Wannabe Jalva eram quase em sua totalidade em inglês, enquanto o primeiro instrumento de interesse de um Felipe ainda menino foi o luso-brasileiríssimo cavaquinho –, o projeto explora elementos percussivos de MPB associados à música eletrônica, soul e rock. Após dois EPs lançados, Tombamento Inevitável (2017) e Pedaço Vivo (2018), Tagua Tagua apresenta seu primeiro álbum de estúdio, o intitulado Inteiro Metade (2020), fechando uma espécie de trilogia dos dissabores.

Com 9 faixas autorais, o disco mergulha entre timbres eletrônicos e orgânicos e apresenta uma faceta mais madura do artista. Se o lirismo intimista lembra um pouco o início de Silva em Claridão (2012), as melodias envolventes mesclam-se a letras inspiradas (praticamente poemas musicados) e sintetizadores que vão desacelerando ao longo das faixas. É como se o álbum traçasse uma linha do tempo desse processo reflexivo, girando em torno da ressignificação de sentimentos que vão sendo diluídos com o passar do tempo, desde seu estado mais efervescente até a nostalgia, às vezes em looping.

 

Felipe Puperi / Foto: Guillermo Calvin

 

A retumbante Mesmo Lugar (e ele vem, dá volta e volta/pro mesmo lugar/parece até que sabe onde chegar/andam dizendo que o agora/é tão diferente/e a vida vai passando pela frente), soul composto em 2019, mais parece uma canção premonitória para nosso longo período de isolamento social. Só Pra Ver (eu vou até o fundo só pra ver/que eu ando e só acabo em você/eu vou até bem longe só pra ver/que eu ando e só acabo em você), primeiro single divulgado, trata com irreverência, tanto no arranjo quanto na letra, da dificuldade em se desvencilhar de alguém. Com levadas orgânicas, mas baseadas em beats eletrônicos, 4AM (deixo a poeira me levar/corro, escorro sem ter hora pra chegar/me encontro com o dia que já se foi/e eu nem vi) aponta para um caminho mais introspectivo, como o próprio “sonho” que a letra propõe. A balada 2016 (parou pra ver ela escorregar/por entre as minhas mãos/parou pra ver ela voar), de fato gravada naquele ano, tem um clima saudoso de quem aprendeu a [sobre]viver “tão longe de mim”.

Com naipe de metais, Bolha (eu vivo na bolha existencial/indiferente, espero ir tudo pro lugar/discretamente, eu saio sem me retirar) retoma a pegada soul e faz uma auto-análise bem peculiar. A embargada Até Cair (feito folha seca desvendando o quintal/roupa enxaguada esperando o varal/xícara molhada desfazendo o jornal/quase em paz), talvez a canção mais séria do disco antecede Inteiro Metade (feito ferro no sal/eu sou inteiro e metade/risco de verso final/vou deslizando em saudade), faixa que leva o nome do trabalho e sintetiza o conceito do álbum. A experimental Sopro (não chegue tarde na minha vida/que eu já não posso te esperar/tô nessa vida/e o tempo pode nos terminar), com pseudo-gingado e verso único é um fragmento de alegria, como todo [re]início prevê. Assim como o encerramento de um ciclo, o álbum termina em clima de renascimento com o “poema etéreo” Do Mundo, avisando que “agora eu sou o/do mundo”.

A questão estética sempre esteve presente na obra de Felipe Puperi, que já trabalhou, inclusive, na produção de trilhas sonoras para cinema. O clipe de Rastro de Pó (faixa de Tombamento Inevitável), por exemplo, rodado no interior da Bahia, aborda a guerra de espadas que ocorre durante as festas juninas e ganhou o prêmio latino do Ciclope Festival, como Melhor Vídeo Musical. Inteiro Metade flutua entre recortes ensolarados e sombrios, como bem ilustra João Lauro Fonte, designer responsável pela arte do disco. Ele traduz nas capas (do álbum e dos singles) e lyric videos a vastidão do universo de Tagua Tagua.

Impedido de divulgar o álbum na estrada por conta da pandemia, Tagua Tagua lançou no final de janeiro uma live session para que os fãs tivessem uma experiência sonora e estética do disco. As 9 faixas – que passeiam entre MPB, indie, R&B e soul – foram apresentadas na íntegra com um belo conteúdo audiovisual. Disponível nas plataformas de streaming e também em vinil, o disco foi lançado simultaneamente no Brasil (Natura Musical), Europa (selo Costa Futuro) e Estados Unidos, de forma independente, aproveitando a exposição internacional do single “Peixe Voador”, presente na trilha do jogo FIFA 2020 e de sua apresentação no Brasil Summerfest NYC e a abertura de uma mini-turnê do The Growlers, ambas em 2019.

Como consta no release da obra, “Inteiro Metade é um disco sobre o processo de encontrar novos espaços pras mesmas pessoas dentro da vida. É ser inteiro num dia e metade noutro. É a caminhada da transformação, da aceitação dessa mudança dentro de nós. Nesse percurso, aparecem os mais variados sentimentos: euforia, alegria, gratidão, saudade, tristeza, luto. Morre uma relação pra nascer outra”. E Tagua Tagua [re]nasce como um dos grandes nomes da nova música brasileira. Como diz o compositor em certo verso de seu primeiro EP: “tua dor é uma dádiva”. Aceita que dói menos: o mergulho é inevitável.

 

 

 

Larissa Mendes, nasceu em Caçador/SC, banhada pelo Rio do Peixe.


 
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