Gramofone

Por Gustavo Rios

 

ANDRÉ LISSONGER – CANÇÕES DEMO SESSIONS 2

 

 

Apesar de ter sido feito durante a terrível situação da pandemia, CANÇÕES Demo Sessions 2, novo trabalho do músico André Lissonger, passa longe de ser um álbum sombrio e tristonho. Ou mesmo uma reunião de anêmicas bravatas “roquenrol” contra o establishment que matou mais de meio milhão.

Com uma bela capa criada pelo próprio, também artista plástico, CANÇÕES Demo Sessions 2, lançado pelo bravíssimo selo Trinca de Selos no começo de 2022, é composto por um apanhado de músicas sensíveis, cativantes e melódicas que elevam ao extremo as composições nela inseridas. Cheio de efeitos que emprestam ao trabalho aquela característica classuda e etérea (scratches instigantes, loops certeiros, vozes dobradas e ruídos meio “outonais”), as 11 faixas do álbum sofrem influência de muitos gêneros, com destaque para o Trip Hop, oscilando numa boa entre os londrinos do Morcheeba e a moçada arrasa-quarteirão da portuária e multirracial Bristol (Tricky, Massive Attack, Portishead; só para ficar na turma dos anos noventa).

Valendo-se também da onda Lo-fi, com sua mistureba relaxante de hip hop, música eletrônica e jazz, André nos surpreende tendo como princípio o espírito “demo” da coisa; espírito que pressupõe arrojo, genuína disposição para experimentar e uma boa dose de liberdade nas escolhas em geral (a vinheta “Olha, Mas Não Mexa” é um exemplo, pela “incitação” a “Girl From Ipanema” de Anitta).

André Lissonger, figura tarimbada no panorama musical baiano, com participações em diversos projetos e bandas, se trancou em casa com seu “estúdio de bolso” (nada menos que o celular pessoal da artista com uns aplicativos geniais) e decidiu viajar. Viajar para dentro – apesar da pompa do release sobre “um olhar sob a tempestade do ‘status quo’ do consumismo e sua quintessência”, ainda defendo a tese do intimismo; mais pertinente, na moral. Da necessidade de criar arranjos para as belas composições de gente como o irrequieto Tony Lopes e do também artista gráfico Joniel Franco (sem falar no “poeta das coisas simples”, Mário Quintana), esse carioca-baiano conseguiu o que, para mim, tem jeitão de proeza: converter imperfeição (basicamente a ideia de um “demo” feito num celular) em música de indubitável qualidade.

 

André Lissonger / Foto: divulgação

 

Explico: hora ou outra, o ouvinte se depara com uma voz que parece desafinar, ou mesmo com letras aparentemente ingênuas e mal trabalhadas – noções para lá de equivocadas. Entretanto, e curiosamente, foi esse combo inusitado e inteligente que me chamou a atenção logo de cara. Lissonger me fisgou pela visão do todo, pelo talento na criação e na execução das músicas, pela consciência do resultado de seu labor (a voz que supostamente desafina tem um motivo, é fruto de uma escolha, de uma concepção) e pelo já citado incomum, fatores que me fizeram pensar a obra inicialmente em termos de experimentalismo.

As letras (ou poemas) se encaixam perfeitamente nos arranjos e vice-versa, numa simbiose merecedora de elogios – e que só o fazer musical proporciona. Temos o hermetismo poético em “Topázios”, passando pela extasiante “Flutuando Sonhos”, do Tony Lopes (“A rua ruge os seus barulhos / Acalenta saudades / Ela livre apenas ri / Com os olhos no Louvre / Sinuosas linhas / Sombras / Com um sol a se opor / A solidão / Quatro paredes / Portas e janelas / Abertas / Como o sorriso / Da Mona Lisa”).

Em “Leblon” percebemos a cadência charm com um piano, enquanto na adaptação musical do texto de Mário Quintana, “Canção do Primeiro do Ano”, a batidinha meio downtempo (considerando o conceito dos 120 bpm’s; aqui bateu 82, 83, de boa) segue abrindo caminho para a complexidade do baixo e para os efeitos de uma guitarrinha wah wah, não na maneira usada no rock e no blues, por exemplo: aqui, a guitarra surge como textura e reforço à atmosfera do som.

Dessa forma, ainda que o baiano-carioca (a ordem dos fatores não altera o produto) André Lissonger não tenha pensado em experimentalismos no decorrer de seu projeto (conceitos e abstrações que só nos levam a labirintos chatos e falsamente intelectuais; o lance é fazer boa música e pronto!), o resultado de seu trabalho me causou aquele tipo de sentimento em que a gente se vê diante de algo novo, mesmo conduzido por elementos já conhecidos – a ideia de um artista em seu estúdio (celular, no caso) criando novos sons sob o método conhecido como bricollage, ou bricolagem, me agradou bastante.

Assim, mesmo que minhas ideias sobre pandemia e experimentos musicais pareçam forçar um pouco a barra na tentativa de explicar CANÇÕES Demo Sessions 2 sugiro que você, querido leitor, escute o cara. E o conheça. Quem sabe você, assim como eu, acerte as contas com a história musical, já que Lissonger está por aí há décadas. Fazendo coisas que valem demais a pena.

Torço pela longevidade dele. E de sua boa música também.

 

Gustavo Rios é baiano e autor do livro Rapsódia Bruta (Mariposa Cartonera, 2016), dentre outros.

 

Clique para imprimir.

Comente

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *