Gramofone

Por Larissa Mendes

 

MATEUS FAZENO ROCK – JESUS Ñ VOLTARÁ

 

 

A pseudo-semelhança com Matuê e o sorriso fácil do jovem de 29 anos é só uma faceta das águas profundas em que Mateus Henrique Ferreira do Nascimento flutua. Depois de algumas tentativas de redigir acerca do mais recente álbum de Mateus Fazeno Rock logo após o lançamento de Jesus Ñ Voltará (2023), em abril, e após ter perdido tudo que já havia rascunhado sobre criador e criatura, nada mais justo do que revisitar este álbum que tanto me impactou no primeiro semestre para celebrar os 17 anos de Diversos Afins. Hoje entendo que o tempo foi crucial para que eu conseguisse expor em palavras o impacto que a obra adquiriu em mim. Até porque 6 meses se passaram e poucos discos me agradaram tanto – do início ao fim – quanto este.

O segundo álbum de estúdio do artista, ao contrário do que sugere seu título, não faz das matrizes religiosas sua fonte principal de discussão. O trabalho dialoga sobre vivências e dores atemporais, que vão além do que limites geográficos ou socioeconômicos supõem. Criado no bairro da Sapiranga, periferia de Fortaleza, além de músico, Mateus é ator, cantor, compositor e performer. O artista também é fundador do “Rock de Favela”, termo que identifica a cena de rock que vai além de questões clichês e aborda a temática negra e periférica. Ele também é a cachola criativa à frente da banda que o acompanha em suas apresentações ao vivo, composta por: Roberta Kaya (guitarra), Eric Lennon (contrabaixo), Glhermee (bateria) e DJ Viúva Negra. Completam o time as backing vocals Mumutante, Bianca Ellen e Jocasta Brito, e os dançarinos Larissa Ribeiro, Rafael Lima e Rafael Tomás.

 

Foto: Jorge Silvestre

 

A faixa-título Jesus Ñ Voltará (a autodestruição começa quando descobrimos quem somos/e principalmente quem somos e aonde estamos) tem a participação de Jup do Bairro e é o abre alas do seu rock de favela, onde logo adverte que o salvador não retornará, mas mesmo assim “quer(o) crer num Deus que bota fé em mim”. A resiliente Pode Ser Easy (firme eu sigo na disposição/se me fazem mal não aceito como algo vital) desemboca num refrão otimista e fácil, extremamente fácil (para não perder o trocadilho) capaz de nos fazer cantarolar por dias a fio: e pode ser easy/e pode ser que eu aterrize/e pode ser que faça bem/eu ir além do mundo que eu sempre estive. Pose de Malandro/Me Querem Morto é outro ótimo momento do disco. Trata-se de uma parceria com Big Léo, que se divide em dois atos, mesclando uma vibe de charme de baile funk com um rap que lembra Criolo em suas canções mais politizadas. Nome de Anjo é poesia pura e talvez uma das mais belas canções do disco – quiçá do ano – sobre alguém que, como dizia Renato Russo em Love In The Afternoon, foi embora cedo demais. Enquanto o reggae Melô de Aparecida (favela pra mim é horta/e fruta podre é composta/bota na terra de volta) é divertida, a doce Pôr do Sol Marrom – composta enquanto pedalava pela orla num entardecer em Fortaleza – tem a profundidade de canções como “Cru”, que lançou Liniker ao grande público.

O “intervalo” entre o primeiro e segundo bloco de canções é composto pela declamação da carta intitulada Feito Um Porco Indo Pro Abate (é difícil pensar que temos que nos cuidar/por saber que nos matando/nós estamos matando alguém/é difícil pensar que temos que nos cuidar porquê…/porque já estão nos matando, aliás, como é isso?), uma reflexão visceral sobre as mazelas que nos assolam. Na sequência, a “no love song” Indigno Love, parceria com Brisa Flow, fala da própria arte de fazer música e é “um caô que você vende como amor”. Apesar do refrão angelical, Da Febre e Rezo lembram os bons tempos d’O Rappa, enquanto a potente Só Suor e Lágrima (eu, de manhã vou pro trabalho/mas quando é tarde da noite eu choro) parece mais a melô de todo trabalhador brasileiro. Se Vontade Nego é contação de histórias da melhor qualidade, Da Noite (e não é só de mitologia/que se vive que se tem prazer/em dizer que a favela venceu/quando ainda estamos a morrer/a gente corre/a gente insiste) é quase uma ciranda de oração (coincidentemente à capela) e tem um pequeno coral formado por Mumutante, Bianca Ellen e Jocasta Brito.

O artista tem como inspiração o grunge capitaneado por Nirvana e Djavan – aliás, o ídolo lhe rendeu a faixa Melô de Djavan, presente em seu primeiro álbum Rolê Nas Ruínas (2020) – e “não sustenta a pose de malandro”, até porque não o é. Mateus Fazeno Rock é um operário da poesia, maior que qualquer gênero possa encaixar ou definir. Não à tôa, compõe a partir da narrativa e só depois constrói a melodia. Criativo e performático, é um sopro de fertilidade no terreno da Nova MPB. O suburbano – que já fez de tudo na vida – hoje faz rock, rap, reggae e R&B como veterano, ainda que contestador como toda juventude sugere. Mateus e sua trupe começam a se aventurar em mares além Nordeste e fazer shows em todo o Brasil, incluindo o lendário Circo Voador, no Rio de Janeiro, e é uma das atrações confirmadas do Primavera Sound que acontece em São Paulo, em dezembro. Jesus pode até não voltar, mas Mateus Fazeno Rock chegou para ficar.

 

 

Larissa Mendes não tem nome de anjo, mas carrega Maria em sua identidade e o rock como oração.

 

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