Por Rogério Coutinho
AMARO FREITAS – Y’Y
Um rio que nasceu na cruel periferia do Recife e deságua nas águas da Amazônia. Esse é um roteiro de viagem possível quando se ouve o quarto disco do pianista pernambucano Amaro Freitas, Y’Y (2024). Um jazzista improvável, que cresceu entre o gospel, o funk e o rap e que teve sua vida transformada após um DVD de Chick Corea chegar em suas mãos.
A estreia de Amaro veio com Sangue Negro (2016), marcado pela fusão do jazz com ritmos nordestinos e que abriu caminho para sua inserção no circuito internacional de jazz. Rasif (2018), cujo título em árabe homenageia sua cidade natal, aprofunda a influência do baião, frevo e coco na polirritmia de seu jazz. Em Sankofa (2021), Freitas completa um percurso de pessoas, lugares e filosofias da história negra brasileira, muitos dos quais ignorados pela história oficial.
Y’Y traz o encontro do jazzista com o mundo amazônico, que potencializou sua música com elementos da cultura da floresta. O título vem da expressão para água do dialeto da comunidade indígena amazonense Sateré Mawé. E é de maneira fluida, como água, que o piano de Amaro constrói uma suíte amazônica no lado A, que recupera a ancestralidade e as lendas da floresta. O piano e a percussão se entrelaçam nas faixas “Mapinguari (Encantado da mata)” e “Uiara (Encantada da água) – Vida e cura”. Enquanto Mapinguari, nas palavras de Amaro, se trata de “um gigante faminto e peludo, com um olho e uma boca enorme no umbigo, que vagueia pela floresta em busca de comida”, Uiara é o boto-cor-de-rosa, o princípio feminino das águas.
A conexão Nordeste-Amazônia já tinha sido feita pelo conterrâneo Naná Vasconcelos em Amazonas (1973), o homenageado em “Viva Naná” e que serviu, de alguma maneira, como guia para Amaro, que usa um piano bastante percussivo ao longo do disco. “Dança dos Martelos” lembra que, no final das contas, o piano é um instrumento de percussão. Ou, mais tecnicamente, de cordas percutivas. Raras vezes um piano soou mais indígena, mais amazônico.
“Sonho Ancestral” é um momento mais lúdico, com direito a citação de “Asa Branca”, que surge como uma possível lembrança de infância, fundindo as bacias do São Francisco e do Amazonas em uma coisa só.
Abrindo o lado B, a faixa-título “Y’Y” (pronuncia-se “iê iê”), trazendo a flauta do britânico-barbadiano Shabaka Hutchings, que representa um “encontro das águas” com o piano de Freitas, como se o rio amazônico desaguasse no litoral pernambucano. “Mar de Cirandeiras” é uma homenagem às cirandas de Pernambuco, uma expressão cultural popularizada por Lia de Itamaracá e pelo Quinteto Violado, entre outros, que aqui ganha a companhia da guitarra do norte-americano Jeff Parker. As reminiscências da terra natal de Amaro levam a um tributo à figura materna, Dona Rosilda, na faixa “Gloriosa”, pontuada pela harpa de Brandee Younger, a primeira mulher negra a ser nomeada para um Grammy de melhor composição instrumental.
Por fim, “Encantados” retoma a abordagem de trio jazzístico bastante comum em trabalhos anteriores de Freitas, com a adição da flauta de Hutchings. A busca pela ancestralidade nas águas amazônicas e nos mares pernambucanos encontra a aldeia global negra do jazz, fruto da diáspora africana. Amaro Freitas aponta para o futuro, sem perder suas tradições afro-brasileiras.
Rogério Coutinho é gestor e produtor cultural, com trabalhos em museus e patrimônio, além de comunicólogo e publicitário. Colaborador eventual da Diversos Afins, apresenta o podcast Gramofone junto ao editor Fabrício Brandão. É o criador e responsável pela Rádio Nove.