Janela Poética I

Carolina Spyer

 

Ilustração: Sadrie

 

Nota sobre uma curva

 

Meus olhos já tão miúdos quanto os seus
imersos nessa cidade de gestos
tão
inusitados

Eu desenhei olhos de ar no papel
extasiada

O ar nu como eu
tão exposto
tão
alterado

Eles picotaram o ar pelo papel dos olhos
deixaram-me o vácuo
deitado minúsculo sobre meu colo
insistente
tão desfeito quanto eu

 

 

 

***

 

 

 

Terroso o seu corpo

 

insistente matéria atravessada no estômago
prepotente que revolve seu cabelo
branco como que autorizado a triturar
seus fios para impor seus vinte mil hectares
de canaviais ou mais fazendo seguir a gentileza
da proposta para que seja uma entre seus quinhentos
funcionários ou mais a esquecer seu pé de jabuticaba
farto como se não houvesse as vozes incrustadas
as vozes do saco barreiro cantando no barro
tóxico alastrando seu tronco no chão

 

 

 

***

 

 

 

Enquanto falávamos de ritmo

 

Éramos três músicas
à trinta minutos de distância
das mesas eu e você
três constrangidas
por linhas e figuras
ignorando as buzinas as mesas eu e você
éramos três músicas mortas
pouco displicentes
porque fenecidas
éramos três dobradas
no tanto de corpo que se tinha
descartadas sem que notássemos
três coisas
pairando
sobre o chão

 

 

 

***

 

 

 

O banho era diário

 

Minhas pernas se encolhem logo de manhã
eram talvez 7 tons de xixi e variadas combinações de cor coágulo e mais
eu apurei 37 graus morre de frio moradora de rua na zona leste

são quem sabe 2 de minhas saídas
quem sabe todas elas ideais
desde tão cedo acordada Fernanda

levou um tiro no peito enquanto dormia sob uma marquise na zona sul
ninguém cuidou da cor e da temperatura dos dias sob o teto infiltrado
de registros e pedaços de pele

e coágulos em fluxos variados logo antes da manhã começar
na zona norte enquanto moradora de rua de 22 anos é atacada
a golpes de gargalo de garrafa toda cheia de mucosa ureia

e água que não cessam de esguichar
enquanto apoio meus pés na parede do banheiro
enquanto cuido de tentar manter meus pés apoiados

os nervos e músculos intrauterinos comprimidos
chorando pelos rins bato na minha barriga
de fluidos na zona oeste

 

 

 

***

 

 

 

O encontro

 

Nós dois um cardápio tímido e a mesa
dispondo nossos cotovelos as sombras
as perspectivas o ritmo da conversa
a abrangência da nossa visão a estética
do tempo cruzando a mesa parada
toda parada enquanto organiza
discretamente
nossa noite que passa

 

 

 

***

 

 

 

Solos cobertos de giros

 

I

Perde a cabeça no ombro
A mão na testa
O umbigo no dedo
O chão na goela
Faz caminho cruzado
Coloca pé com pé
Mede tamanho de tempo
Lambe intervalo do peito
Tosse em silêncio
Abre de mão dada
Bunda com bunda
Enquanto ficaram os olhos alagados

 

II

Corre dedo na rua pra conhecer o maciço do chão
Atravessa pedra, ponte, peito
Hoje é quinta feira
Percorre túneis sondando seus círculos intermináveis
Olha curto, curso
Hoje é quinta feira
Rastreia linhas topográficas
Toca
Finge rosto desforme curvando pescoço
Se lambe imensa
Lado, lastro
Lapso
Ela nunca pensou em atravessar essa via à noite
Hoje ainda é quinta feira

 

III

Roda céu: então chora (então escapa)
Tanto se pôs à superfície que agora é quase toda língua
Quase toda anel viscoso dela mesma
Rasteja à revelia do corpo
Com seu corpo

 

IV

Sensível às vibrações exteriores
Reajo entre expansões e contrações
Escavo galerias e canais
Me alimento de detritos de diversas origens
Enquanto constantemente excreto terra
Já não tenho pulmão
E me regenero

 

Carolina Spyer nasceu e vive em Belo Horizonte, Brasil. Possui graduação em Direito pela PUCMINAS e mestrado em Filosofia do Direito pela UFMG. É poeta, publicou “vrás” pelo Selo Leme (Editora Impressões de Minas, 2016) e tem poemas publicados em revistas virtuais.

 

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1 comentário

  1. Que lindeza!! Parabéns!

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