Janela Poética I

Ricardo Escudeiro

 

Ilustração: Joana Velozo

 

se tal não vai à montanha à que vão já as montanhas

 

“A menos que con afán, que con afán conserves
Tus inquietudes y así nunca envejecerás”

 

transtorna as geografias
os planaltos as planícies
as depressões
as intempéries vêm em dois tipos
de dentro
pra fora e de fora
pra dentro
pega de punhado
tudo o quanto geomorfa e deduz pra si
um rosto não inquebrantável
que soe quase como se fora
manufaturado por um deus perspicaz
ou assim parecesse ao menos

a maturação um dos envelheceres mais inacabados

longe dos céus tanto almas quanto pássaros
livres e já próximos muito próximos
do paraíso como todo o resto

um silêncio de milhos nas calçadas

e chega
tremem
as rótulas quando querem tudo
não me dói
nos joelhos a montanha
agachada em perjúrio

 

 

 

***

 

 

 

ab sentia

“[…] a mão é um pentagrama,
mesmo morta.”
(Andréia Carvalho Gavita)

 

e foi que perdi

e fiquei só
com aquela parte mais bonita

tipo

uma música
e o silêncio que ela provoca

 

 

 

***

 

 

 

contra conjunto ou neon sobre fumaça

 

 

“Olhos míopes inúteis
obrigam-me […]”
(In: “Inconfidência primeira”, de Natália Ribeiro da Conceição)

 

 

o olhar mais se detém mesmo é quando falha
noutras vistas as minhas
descansadas param com isso de

ultrapassa pelo acostamento
vai

tatear os mundos pelas suas córneas e pelas suas cordas
pois

dói na garganta o tanto seu nome nos pulmões
e nos descansos
e nos cenários
e numas pedras com umas sílabas
à tiracolo

ficar perguntando pra janela
quando a gente nem tá mais no carro

já chegou

não não
falta ainda alguns aniversários

ver mais mesmo é quando longe

leio
claro tipo
um miopismo inexato

na fumaça do cigarro toda a esquiva tragada
o cotovelo na mesa a cabeça entre os tabacos
como num balãozinho de hq daqueles de pensamento sabe
uma interrogativa
ou uma inlabial desleitura

faz quanto tempo desde a última
vez que sua boca nunca

 

 

 

***

 

 

 

garganta do diabo

 

“[…] I finally died which started the whole world living
Oh, if I’d only seen that the joke was on me […]”
(Single by Bee Gees, 1968)

 

 

desse teu imenso e venerável e húmido

não era dizer ainda
da nossa alma olhando pra dentro
enquanto grandeza mensurável a fúria do mundo tem mais peso
e ainda
em nossos
estados mais primitivos é que nos tornamos
mais rápidos mais furtivos
do sublime ou da lição de arquitetura dos tempos

silêncio

 

 

 

***

 

 

 

fraturar as raízes duma ilha

 

“[…]
Ou a enxuta memória de quem não sofreu, não morreu –
apenas olhou.
E gravou a visão do demónio no quintal.”
(In: A dolorosa raiz do Micondó, de Conceição Lima)

 

 

daí uma vez
não
não gosto do
era
uma vez ela me perguntou

se você pudesse ser alguém
da literatura quem seria

respondi eu seria
a susan sontag
a conceição lima
a hilda hilst
a carolina maria de jesus
a paulina chiziane
eu seria
a stela do patrocínio

e era só isso mesmo
histórias à parte e também entropias
encontramo-nos noutra forma
encontramo-nos noutro modo
encontramo-nos noutro sítio

 

 

 

***

 

 

 

Ordália

 

 

“Se deus der rolê com cartão magnético
nem por marca de nascença
reconhecem no exame médico
[…]”
(-In: “Direto do campo de extermínio”, Facção Central, 2003)

 

menos o ônibus chacoalha mais livres as mãos
perceber não só com o corpo mas
com o corpo inteiro
a organização dos ódios ainda que desses de pequeno porte
e a maneira lenta
lentíssima bem lenta pela qual nossas formas a um só tempo
abrangem a terra e desatam da terra
as maneiras pelas quais os determinados chãos onde cremos nem sempre
funcionam nos mesmos termos ou permitem
os embarques os desembarques aqueles
aos quais queremos
o aviso é claro o aviso é objetivo
fale com o motorista somente o necessário
bem como os outros do tipo
esse assento é de uso exclusivo e ou preferencial
ou fique atrás da faixa amarela
talvez soassem melhor se fossem não pisoteie lugares místicos
de caminho no corredor vamos uns aos outros
nos evitando mas nos ouvindo

oh
que será de nossos filhos de cem anos depois de tudo isso
terão eles também alguém nos acentos aos lados pra dialogar
perguntar e aí valeu
mas por que um céu tão baixo
mas por que abaixaram tanto esse céu
é pra poder tocar sem as ajudas de aparatos levadiços será
e ainda que o céu se quebre não condenaremos nossos

opa no próximo eu desço satisfação te encontrar
precisamos nos ver com mais tempo
queride fica bem agora com licença enquanto eu mato o céu

ali espia
o gambé com o negócio coldre neh que fala
desabotoado

aham
dizem nos transportes públicos eles têm que tá sempre de pé

menina mas cê ouviu quando ele falou
do milagre do barro como portento divino
mas se há todos esses outros de porte pequeno
as fomes as sedes as linfas
e o principal deles esse milagre
o da brita

oxe pior ainda
e se o enquanto vamos apertando botões puxando cordinhas
é o enquanto vamos anulando-nos uns aos outros enquanto criaturas
de caminho no corredor aniquilando-nos

pois é
ainda que aqui donde a gente tá
parece tudo meio calmo um pouco
ih olha lá
o pivete estrebuchando no chão esse aí
deve tá na abstinência da pedra
certeza

ou não
pode ser na abstinência do pão talvez
tomara chegue logo nosso ponto
que de bucho cheio talvez a gente expia umas certezas
dessas mais bestas
os quinze minutos de rango hoje deu nem pra metade da marmita

no pano de fundo desses diálogos muito muito imprecisos
um cão pixa com mijo ao pé da letra no poste
estamos será a quantas refeições do colapso cívico
debaixo desse sol tremendo

 

Ricardo Escudeiro (Santo André-SP, 1984) é (ex) metalúrgico e (ex) professor. Autor dos livros de poemas “rachar átomos e depois” (Editora Patuá, 2016) e “tempo espaço re tratos” (Editora Patuá, 2014). Graduado em Letras na USP, desenvolve (ou não) projeto de mestrado com interesse em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa e Estudos de Gênero. Possui publicações em mídias digitais e impressas: Escamandro, Germina, Jornal RelevO, Mallarmargens, Flanzine (Portugal), Enfermaria 6 (Portugal), Tlön (Portugal), entre outras. Participou das antologias “Os pastéis de nata ali não valem uma beata – antologia de 2017” (Enfermaria 6, 2018), “29 de abril: o verso da violência” (Editora Patuá, 2015), entre outras.

 

 

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1 comentário

  1. Parabéns, Ricardo, pelos profundos versos compassados!

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