Janela Poética I

Priscila Hoffmann Merizzio

 

Foto: Almir Bindilatti

 

seis corações puros com ponte de safena

 

Os poemas a seguir foram inspirados nas colagens dadaístas, na eletronicolírica de Herberto Helder e no cadáver esquisito do surrealismo.

 

 

….I.
no mundo terá aflições, mas tem bom ânimo,
eu venci este mundo
onde tudo dilacera e emudece,
onde tudo mente e separa
em meu tórax se faz uma ideia de Deus que não gangrena
é fácil recolher as pedras do caminho
é fácil contar o alfabeto em carneiros e amansar
porque eu mesma sou esta devastação inteligente regada
de malmequeres fabulosos
porque Deus chamou-me de filha e eu pude criar
letras que se amam como cordas afinadas de um instrumento celestial: uma harpa esguia de bondade e amor

e um ódio de pura navalha
o coração arrancado do peito
e exposto no balcão do açougue
pulsando, mugindo

 

….II.
a mulher, quando está para dar à luz,
sente tristeza, porque é chegada a sua hora
engole um tenso terço de mãos,
sob um teto escuro de edícula sem estrela
depois de ter dado à luz a criança,
já não se lembra da aflição, pelo prazer de haver nascido um homem no mundo
tudo vive nela, tudo se entranha
ela ama como a estrada começa
quer só andar nua debaixo do vestido
respirando debaixo das saias, pois de sua intimidade saiu
outra vida
e a bexiga próxima do útero já não faz mais sentido
o estômago ardente já não faz mais sentido
só seu coração de mendiga comido pela lepra materna

 

….III.
a carne redonda e perfumada do teu coração
enfrenta um minúsculo regato de silêncio
a garra bêbada do átrio esquerdo tudo quer da vida,
tudo quer da fome!
não preste satisfação de suas loucuras
só abra a porta para estranhos
enfie as 400g de seu coração na bolsa antes de girá-la na esquina
ofereça o ventríloquo direito àqueles homens de terno
e contraia.

 

….IV.
Deus possuiu meus rins e me cobriu no ventre de minha mãe
os meus ossos não foram a Ele encobertos, quando no oculto fui feita, e entretecida nas profundezas da terra
Ele me deu o sangue e o maná e disse-me que era bom
quando eu morrer voltarei para buscar
os instantes que não vivi junto do mar
onde o poema é de sangue: vermelho e espesso
grito de pássaro atravessando a noite
pássaro feito de veias, criaturinha feroz encarnada de bicos e coágulos
um pássaro em sangria absoluta, tingindo as cabeças dos sortudos
arma que se mete para dentro e transborda no sono que vem dos céus
quem morre, morre, tão fulgurante nas mãos e na testa
que ali não há mais noite,
nem a necessidade de lâmpada nem de luz do sol,
os outros ferem nossos corações de moqueca de camarão
nossos corações de cartilagem e Moçambique

 

….V.
Você, que me tem feito ver muitos males e angústias,
me dará ainda a vida, e me tirará dos abismos da terra
há palavras escuras, guardadas dentro de outras arcas
roxura é ânsia, roxo imundo na fissura da rocha,
na fissura da boca
o mar suga essa fenda, essa garganta,
é preciso o revólver de um só tiro na boca
é preciso o amor de repente de graça
o estrídulo o roxo o palavrão o dedo do meio
os poetas imaginam sempre suas próprias rosas
nunca fui senão uma coisa híbrida
aquela que não te pertence por mais queira
a rocha lírica de engasgo na tua moleira
a fina flor de nitroglicerina

 

….VI.
seu coração é uma jaula de luz fechada
um silêncio de alma atormentada
se o seu canto soar bonito,
cuida para que não seja um grito
entre o beijo e a renúncia, tempere com violência
este jantar

nos oitenta buracos de fechadura, aquelas almas subirão ao céu?
não escolha o passo que flutua, mas o cimento que pesa
em seus pés
nessa jaula o coração definha, embora
os laivos de fúria mintam que você ainda é capaz de unguentos
eu sei que suas pernas tristes não te levam
a um palco de amor
por trás destas grades existe um homem vestido de bicho
apenas aguardando o clique do ferrolho
para beber o sangue de quem passa

 

Priscila Hoffmann Merizzio. Curitibana. Tem dois livros publicados: “Minimoabismo” (ed. Patuá, 2014), semifinalista do Prêmio Oceanos 2015 e “Ardiduras” (ed. 7Letras, 2016).  Mestre em Estudos de Linguagens, escreveu sobre os matizes surrealistas num poema de Herberto Helder. É idealizadora e coordenadora do projeto Pulmões Versos.

 

 

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