Alberto Bresciani
ECLOSÃO
Perdíamos o ar, para ganhar mais, logo depois,
e saíamos rápido, procurando lugares claros,
onde a cidade oferecesse melhores condições
atmosféricas, para esquecimento e respiração
E seguíamos pensando em uma hora,
duas, quase afogados, sem perceber riscos,
bichos fugidos, animais selvagens, as palavras
presas na garganta, os corpos iscas dos corpos,
como se o melhor dos segredos estivesse
por ser revelado, uma espécie de início,
cio, jogo, a escolha do dia para nascer, lá,
afinal, a eclosão, o resto das nossas vidas.
***
SILÊNCIO
Às vezes é melhor não dizer nada, ou quase
O que se diz ganha corpo, membros,
senta-se à mesa e se esgarça
toda a chance de esquecer
E esse corpo assume espaços, crava o ferrão
em um único lugar na respiração, na linfa,
corpo estranho que nenhum glóbulo branco desfaz
E talvez seja esta a forma de desistir ao contrário,
para sobreviver à dor generalizada,
sem anestesia, antidepressivos, alucinógenos
É este silêncio liso, longo e coagulado
de bicho-preguiça, imóvel, crédulo, na árvore,
enquanto espera
E não sabe, não vai saber
do sobrevoo da harpia.
***
CARDUME
É preciso calar,
porque em silêncio respiramos melhor,
o diafragma está livre e ondula,
brânquias secas por fora,
mas que engoliram o mar
A respiração assim não amarra veias,
não arruína enredos,
não condena desfechos,
garante mais uma cena,
outras centenas delas,
e, dependendo do ritmo,
abafa o terror da trincheira
A mudez deixa todos os golpes
abaixo das bordas do cardume,
da pontaria dos bicos,
mandíbulas, dos dentes
Não ditos, o baque, a ruptura, o tapa
são nossos, só nossos, não ferem
– armadas se esquecem na rocha.
***
PEGAR OU LARGAR
Nas avenidas de Amsterdã,
naquelas manhãs de setembro,
aprendemos que as lágrimas
têm sempre a mesma substância
O tempo não as torna mais doces,
o tempo não as estanca
Vimos o castigo por entre
árvores de falsa inocência
Não é nenhum segredo
Isso lateja em cada palavra
Sim, o nunca estava ali, conosco
Ainda está
As tardes terminavam
e nenhum farol nos distinguia
Melhor secar as lágrimas
Talvez o esquecimento
venha à cama,
outro dia chegue,
devolva um pouco de tempo,
bom nome às coisas
Os dados estão lançados,
as apostas, abertas
Basta girar
a roleta.
***
HABITAT II
I
Insistem os medos por dentro da pele,
escondendo os órgãos, o sangue, em todos
E nem sabemos o que nos falta,
do que fomos apartados algum dia,
porque nunca estivemos presentes sequer em nós
E então escavamos o que já está muito seco,
em busca de água, como toupeiras, javalis
Ou mergulhamos, invisíveis baleias azuis,
para gritar até que o silêncio enfim respire
II
Procuramos sempre a ilusão
no que é o inverso de tudo, com ansiedade,
o ar preso, a resposta esperada
em bolhas de vidro que repetem
a neve, cenas impossíveis
de um idílio sem calor, líquidos, pulso
E se pensarmos bem, sim, jamais tivemos
um lugar só nosso, onde morar,
defesas psicológicas, miméticas, abrigo
III
Amanhã, talvez, nem nos lembremos de quem somos
ou quem são os outros, porque não conseguimos
nos entender ou ao nosso século,
a nenhum deles, o que dizem e o que dizemos
E somos só isto mesmo: animais solitários,
tentando a sorte, insistindo no tempo
Até que alguma palavra caia, por azar,
castigo ou revelação,
e, enfim, possamos
aceitar.
***
CORVOS
Não via os corvos,
mas eram corvos,
prendendo o tempo
E eu criava pombos
Quando você saiu,
as sombras
tinham penas negras
e ficaram pela casa,
pela garganta,
as suas penas
Ontem entendi
e acendi a luz.
Alberto Bresciani nasceu no Rio de Janeiro. Vive em Brasília. É autor de “Incompleto movimento” (José Olympio Editora, 2011), de “Sem passagem para Barcelona” (José Olympio Editora, 2015, finalista do prêmio APCA de Literatura – Poesia de 2015) e de “Fundamentos de ventilação e apneia” (Editora Patuá, 2019). Integra, entre outras, as antologias Outras ruminações (Dobra editorial, 2014) e Escriptonita (Editora Patuá, 2016). Tem poemas publicados em portais, blogs e sítios da internet e em revistas e jornais impressos.