Janela Poética I

Ricardo Thadeu

 

“Desespero”: Claudio Parreira

 

VOZ

 

Está tudo aí:

Os discos de heavy metal,
O último discurso do condenado,
O recado na agenda do ministro,
O bem, o mal, a torpeza
E a bunda em rede nacional.

Somos abonados pelo futuro.
E não há tropeço.

Há caminho.
………………Apenas um.

E seguimos por ele, em fila indiana,
Adiando o regresso.

 

 

 

***

 

 

 

BAQUE

 

Aposentei o velho discurso.

De longe,
Acompanho o curso da história.

Há tantas célebres frases
E nenhum acelerador de partículas.

Há tantas formas de amoldar
E nenhuma de embrutecer.

Penso nos debates, nas contendas,
Nos homens minúsculos,

No mormaço dos becos;
Penso na sorte dos imaculados

E no monge, na montanha,
A descobrir novos silêncios.

De longe, muito longe,
Acompanho o cerco da morte.

 

 

 

***

 

 

 

REALEZA

 

A corte do passado
Passou dessa
……….Pra uma pior:

O príncipe pop
Virou ator pornô;

A rainha do rebolado
Mendiga likes e views;

O imperador
……….Do reality show
Foi achado morto.

A corte do passado ─
Quem diria? ─
Passou dessa
……….Pra uma pior:

Subiu às nuvens
Em arquivos virtuais.

 

 

 

***

 

 

 

ESCONDERIJO

 

Só acredito no que não sinto,
No mistério, na pergunta eterna.

Inferno? Deus? Extraterrestres?
Creio no enigma que os cerca;

Creio nos poemas não escritos,
Na poesia que emana do engano.

Não espero respostas definitivas,
Nem que um sábio dê o Veredito.

A face oculta das coisas táteis:
Eis aquilo no que (só eu) acredito.

 

 

 

***

 

 

 

MAKE DEATH GREAT AGAIN

 

Não estamos na Idade das Trevas,
Mas não estamos
……………..No Século das Luzes:

Estamos na época

Dos homens fartos
……………..De coisa alguma,
Das cruzes que viram espetáculo;

Dos celulares incríveis,
Dos dedos sujos apontados pro errado;

Dos argonautas virtuais
Presos em suas bolhas,
……………..Barcos naufragados;

Das dietas malucas,
Dos corpos de fast food,
Dos que não comem carne
…………….E dos que não plantam
…………….Uma só semente.

Não estamos na idade das trevas
Mas já não temos
……………..Tanto tempo assim.

 

 

 

***

 

 

 

ENCHENTE

 

Inquilinos tiram móveis
E rezam pro Santo de devoção.

Além das histórias,
Dos homens cobertos de lama

E da bondade dos abutres,
Há uma falsa esperança:

As águas do Jacuípe
Encontrarão novo caminho.

 

 

 

***

 

 

 

DAS MEMÓRIAS

 

Vejo tudo com bastante nitidez,
Mas não posso revogar o tempo:

Minha mãe mexendo o café,
Seu rosto sumindo entre nuvens;

Meu pai estacionando o Chevette,
Toda tristeza embaixo do bigode;

E eu, desperto, nutrindo planos
Que não realizo antes de morrer.

Vejo tudo num fio de memória
Tão nítido quanto não deveria ser.

 

Ricardo Thadeu (1989), nascido em Riachão do Jacuípe-Ba, é mestre em Estudos Literários (UEFS), professor e escritor. Publicou diversos livros, sendo “Você não deve pensar nessas coisas” (Penalux, 2020, poesia) o mais recente. É integrante de mais de uma dúzia de antologias, dentre elas: “Tudo no mínimo: antologia do miniconto na Bahia” (Mondrongo, 2018, miniconto).

 

 

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