Janela Poética I

Bruno Oggione

 

Foto: Fátima Soll

 

O SAL DOS TINTEIROS

 

atrás dessas máquinas,
nas folhas, no papel,
desenhei, iluminado à nome,
a física do mundo.

há luas, há sóis
atrás dessas máquinas.
dias sem imobilidade,
flores brancas.

atrás dessas máquinas
desabrochou a noite morta
a consumir as linhas
do dia germinado.

há palavras sujas
atrás dessas máquinas,
fixando ao sonho
extintas ideias.

atrás dessas máquinas
circulei a emoção sanguínea
de poetas fantasmáticos,
monstruosos, aquáticos.

atrás dessas máquinas…
bichos mais densos
lutam. sou lápis (e carvão),
dentro do branco pouso,
pouso salgados gestos,
pouso o sal dos tinteiros.

 

 

 

***

 

 

 

a passagem das tardes
deita
no vazio da hora

pouso solene
brilho
de uma ardência concentrada

nudez
vista
numa mesa
antiga

no espelho aceso
navego ao silêncio súbito

 

 

 

***

 

 

 

PALAVRA

 

a nudez.
a nudez no tempo.
o rugido tão vulcânico como a nudez.

arremessávamos
fetos,
cruzamos a cratera, procriamos
a cópia que renascia do milagre:
palavra.

palavra – uma cópia do silêncio
o rugido no rugido
iça
anti-seres.

vaidade.
a lua de mar a mar
se afoga.

uma cópia ainda, assim, e as imagens
flutuam no tempo primordial.

 

 

 

***

 

 

 

entre o mapa indecifrável e inabitável
um homem surdo navega.
tateia uma zona nebulosa
feita de tremor e de silêncio…

o seu frescor ardente espaça
atrás de si os astros e os palmares.
este o ilumina, este outro o escreve…
visível a tais surgimentos,

brilhosa a costa em clamor inavegável,
sabiamente ele navega.
tateia uma zona nebulosa,
feita de tremor e de silêncio…

 

 

 

***

 

 

 

A ESPADA

 

os esquecidos vibram no regresso dos enigmas
abertamente.
e eu naveguei do meu espelho
os segredos mais milenares.
o meu sono movimenta meu corpo
em todas as noites que voguei.

dentro da sombra
no fio ácido do rosto
finjo-me marinheiro.
dos olhos das lendas
surge o rumor das águas,
incertas como um sêmen de inseto.
sei que depois quando me erguer
escutarei a espada da insônia
abrir salgada a crônica das medusas.

 

 

 

***

 

 

 

O DOM DO SILÊNCIO

 

o silêncio termina
onde o silêncio começa:
à margem do paraíso
uma súbita brisa de velas
comanda naus

e contudo o silêncio termina
e o sorriso grisalho
se curva sobre
a flâmula luciferina –
no horizonte onde o silêncio começa

coração de ideias: o silêncio termina
mansa tela cancerígena
exigindo as cores da arte –
no horizonte onde o silêncio começa

branca praia e mar albino
laborando ideias –
no silêncio onde o horizonte começa

 

 

 

***

 

 

 

O CÁ FORA E O LÁ DENTRO

 

a liberdade emerge no jogo silencioso sonhado pela alma
e transparece perigoso no fundo surdo do mar.
entre o cá fora e o lá dentro, no dia liso que os sufoca,
súbitos desastres cantam.

 

Bruno Oggione nasceu em 1990 na cidade do Rio de Janeiro. É graduado em Letras (UERJ), mestre em Literatura Portuguesa (UERJ) e doutorando em Literatura Portuguesa (UERJ). Autor dos livros “Mãos de Ninguém” (pequenas astúcias) (Editora Morandi) e “Velas Pandas, andas… – Ode Marítima e Os Lusíadas” (Folio Digital, no prelo). Tem poemas publicados nas revistas Mallarmargens e Aboio.

 

 

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