Janela Poética I

Laura Assis

 

Foto: Gilucci Augusto

 

Chão

 

O silêncio
não é o melhor meio
de conter acidentes.

corpo escolha luz sorte
detalhe perda relógio tudo
existe além da linguagem

(seu nome:
serial de rumores
que nada diz
sobre seus gestos)

Talvez ler
o livro do mundo
seja também
saber perdê-lo.

Antes do ruído
a vida é.

 

 

 

***

 

 

 

Passo

 

Ainda que isso seja
inversamente proporcional
(pode ser que eu me perca
no meio do passo
e tudo acabe
antes de você chegar)
quem não dança,
esmaece:
gira
mais devagar.

 

 

 

***

 

 

 

Oberkampf

 

Nossos pais morreram
no mesmo acidente estúpido:
vimos o sangue,
vimos os corpos.
E você me fez prometer
que jamais
te deixaria

Morávamos
no mesmo
prédio,
no mesmo
andar.
Sua porta era colada
à minha porta e
entrar no seu quarto
ou no meu
era igual,
mas ao contrário.

O metrô passava a cada
três ou quatro
minutos
a estação era a cozinha
da sua casa,
parecia Oberkampf
mas com menos
azulejos amarelos.

Sua voz ainda era
uma força da natureza
que me alcançava
na sinestesia
dos sonhos.

E dos sonhos
acordei
e nunca mais
escrevi sobre cadernos
folhas
em branco
desertos

palavras escondidas
atrás de
palavras escondidas

E as coisas passaram
a ser como antes eram:
as coisas,
só as coisas
pouco importa a ênfase
pouco importa a verdade
o que importa é a vida
(e a vida
não cabe).

 

 

 

***

 

 

 

O desamparo é um labirinto perverso.
Onde nunca se imagina a saída,
é justamente o lugar em que ela está:

…………………………………………………………na entrada.

O princípio é isso:
duvidar de tudo sem saber
de nada.
Não alcançar o interruptor,
um vislumbre de móveis
e mágoas.

Crianças crescendo no escuro.
Perséfone
descendo
escadas.

(mas só bem mais tarde elas entenderiam essa metáfora)

 

 

 

***

 

 

 

Uma década com os olhos
cheios de névoa
e as mãos

tomadas por livros
errando

por corredores
onde as mulheres que se pareciam comigo
falavam baixo pediam
desculpas

…………………………………………………………………..sumiam

 

 

 

***

 

 

 

I
Nunca estou sozinha nos corredores
de lojas e supermercados;
isso poderia ser uma história de amor,
mas é exatamente o contrário.

 

 

 

***

 

 

 

II
Existem várias maneiras
de se livrar de um corpo:
obrigue o corpo
a esconder
seu corpo;
olhe pro corpo
como quem vê
outra coisa
no lugar
do corpo;
ensine ao corpo
que tudo bem
ser ferido e morto
por outro corpo;
convença o corpo
de que ele é
apenas um corpo
e nada mais.

 

Laura Assis (Juiz de Fora, 1985) é poeta, tradutora, editora e professora, com doutorado em Literatura pela PUC-Rio. É autora dos livros “Depois de rasgar os mapas” (Aquela Editora, 2014) e “Parkour” (Edições Macondo, 2022). Integra o coletivo editorial Capiranhas do Parahybuna, edita a revista ADobra e dá aulas de Língua Portuguesa e Literatura no CAp. João XXIII/UFJF.

 

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1 comentário

  1. Poesia boa é a que instiga. E isso aqui tem demais. Gostei bastante!!

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