Rita Santana
Escrita
“Por afrontamento do desejo.”
Ana Cristina César, 27
Com que tormento sento
sobre noites secas e quebradas
onde estalam estrelas, e fachos
quentes rompem horizontes.
Não há nada diante de mim,
senão o vazio no espaço,
o aço sobre a mesa,
a lâmina da língua
que elimina o hálito
e ordena a ordenha
da Criação.
Ouço uivos de ouriços
dentro do poço
e me curvo
à pena e ao punhal.
O Outono risca o céu
de cinzas e incertezas e quedas.
Eu espio a escuridão do rio [Joanes].
***
Austeridade de Modigliani.
Tudo é uma jarra d’água derramada sobre o sossego:
um vazamento opressor na descarga,
um vazamento opressor na pia da cozinha.
Concederia pêssegos frescos ao mancebo
que me trouxe orgasmos
em seu bornal, em sua vassalagem provençal,
e
foice.
Nunca terei a austeridade geométrica de Modigliani.
Talho o verbo e, no poema,
labirinto o Minotauro.
***
Eu, Sapho!
Quando chega do céu,
veste-se então todo de púrpura.
Visto-me de âmbar, abro janelas
e veredas que murmuram águas
à sua passagem.
Danço à sua chegada com festins,
rituais de camaradagem, banquetes de Babette,
alvíssaras, alfaias e entregas.
Nada usurpa a vaguidão dos sentidos,
o estado de languidez daqueles dias.
Resfregam-se amor e medo em meus colapsos.
Há sismos duradouros na carne,
quando cataclismo gozo consigo.
Ante seus olhos istmos, olhos de cereais,
sobre os quais cambaleio e desnudo-me exata,
ritmo versos e estimo arritmias.
Assim como sou: a que envelhece,
a que pende sobre o nordeste dos sentidos.
Aquela que, sobre os telhados, observa sua vinda.
São candelabros acesos na escuridão,
quando chega do céu. Nuvens invadem
os cômodos da casa por alguns dias.
Os cobogós se dilatam!
***
Cortesia
Enólogos avaliam
a acidez das rugas,
cuidam do envelhecimento
das esperas em carvalhos.
Dialogo com a Sombra,
refugio-me no fugidio
e aceito trazer o candeeiro,
pois tento tocar o que me escapa.
Orvalho refinamentos,
dilato nuvens no crepúsculo
e corro na amplidão dos céus.
Homologo alguma alegria
no porvir das correntezas.
Osculo lábios perdidos na lembrança.
Afianço amar a quem já não quero
no ofertório da Casa.
Alumbra-me a sapiência
daquele homem que estila
o Desejo, sem atentar ao telhado
das horas, sem aceder às vigas
céleres dos ponteiros.
Sobejo-me
em seus beijos.
Oxalá eu possa ser cristal
para acolher os aromas do dia, os tons
das aveniências que surgem no contato
com quem está do outro lado do rio,
e ordena romãs no leito da velha jangada,
dispõe os figos e as amoras sobre os bambus,
a fim de que eu, um dia, desatenta e casta,
saboreie as dádivas da sua Cortesia.
***
Papoulas na Fotografia
Mulheres afegãs,
entre a plantação de papoulas,
colhem e ofegam desejos,
com seus lenços rubros,
sua exaustão que plana sobre o cinza
que cobre o horizonte.
Papoulas na
província de Balkh.
Daqui, não vislumbro risos
entre as folhas e os botões que ainda dormem.
As papoulas não querem nascer.
Mulheres vestidas de cinzas,
numa paisagem de chumbo,
também de plúmbeos desejos,
refugiam-se na lavoura.
Herméticas, as papoulas adormecem.
Sequer
um verde-solidão vibra
a cena.
A Loucura sentou na cama
e olhou para as mulheres.
Era preciso arrancá-las da dor
e levá-las ao outono dos dias,
ao pasto da fome,
ao descampado da razão.
***
O Silêncio de Bach
O que amo em Bach
é o seu silêncio.
O vazio de som
das sonatas,
a trepidação das suítes.
O que amo em Bach
é a sua engenharia
do nada.
O que amo em Bach
é a música que não existe.
Rita Santana – Escritora e Atriz. Graduada em Letras pela UESC. Em 2004, ganha o Braskem de Cultura e Arte para autores inéditos com o livro de contos “Tramela”. A partir daí, publica: “Tratado das Veias”, “Alforrias”, “Cortesanias” e “Borrasca”, além de participar de eventos literários e de antologias.