Janela Poética II

Isabela Rossi

 

Foto: Tati Motta

 

UM CANTO

 

dos pássaros
honradas todas as plumas
rimos com dentes de nada
próximos choramos
Grandes telas de cinema
estações de tratamento
As ratas de esgoto também não conhecem aberto
o céu
Toquemos pra elas, Viviane
Com as palavras no azul
o violão cello
em comum nós temos um coração
patas
e pêlos cheirando azedo
ou sangue
quando a chuva infiltra
palcos planos
porões cândidos
Todos
desertos loucos da nossa alma

 

 

 

***

 

 

 

seria pássaro
a máscara caindo em rasa água
uma língua em pleno voo
trocar as penas que sinto de mim
por uma plumagem nunca antes inaugurada
pássaro átimo
desentendida da fome
invenção do étimo a
alinhavar o bico
onde
bocas já não falam mais,
assovios se afinam
busco este alimento, frutas em
olhos de virgem,
as folhas secas
que o jardineiro acomodou antes de fugir

 

 

 

***

 

 

 

COM A MÃO ESQUERDA

 

I

raiva acumulada nos anos
doce revólver mirando ânus
não quero nada disso
goteira de água morna
enxofre do desejo
não parece
mas meu corpo é feito no bronze

 

II

Par de olhos se despindo frente a frente
sombra ante sombra
luz fosca na verdade oculta
porrete na invenção do que se quer pra sempre
límpido cristalino sem violenta irrupção
Hora do espelho
Não me vejo taciturno e
uma chaga dantes tema misericórdia
é agora sangue urdindo
Em dó menor
Morrer todo dia cansa
estilhaçada a
nudez dos anjos
eu quero agora Cantar

 

III

que imagem é aquela desfeita
contratempo da charada
que rosto é esse pincelado
na astuta margem da página
cospem-nos as esfinges em ossatura

do espelho que estilhaça
Em todo poema
colo cacos
A procura do alguém que responda
o antiquado chamado
do Eu

 

IV

válvula
vibra vermelha vulva
essa mulher
verborrágica
vai gozar
mão esquerda em euforia
doce
vesicante prazer
ruindo
não há pesadelo
penetrar fecunda
a Vida

 

 

 

***

 

 

 

AREIA E CASTELO

 

areia e castelo
semente e casca
aço e sertralina
eu estava ficando louca
até no front
da pele com a pele
explodir
o sal
de uma Manhã

 

 

 

***

 

 

 

CANTO DA VIDA COMUM

 

I.

por que me destes Deus este segredo da Pedra?
por que não olhaste para minha cara
dente de leão nos lábios da criança
e legasse a febre ou
sóbrio
o caminho dos leitos
que levam à Lete?

foi-me aventurado granitos
minérios
a levedura do chumbo

mas sou uma mulher
e todos os fuzis
são velas nas minhas mãos

 

II.

dedos da pianista
Lizst era um soldado
que gostava de açúcar
nós estivemos a ponto de partir
mas aquelas notas
melodias do incomum
desarmaram a vaidade

Filarmônica de trapos
preenche nossas horas
lugares onde descansamos
tecidos nos ninguéns

 

III.

nunca coube
nesta solidão
o vazio da estrela torta
recolhidas ao fogo
partilhamos apenas
os cacos
das vitrines opostas

refém dos caramujos
o Eu é insolúvel nos espelhos
muralhas contornantes da vida comum

 

Licenciada em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas e, atualmente, aluna da Escola de Arte Dramática da USP, Isabela Rossi é atriz e autora na Companhia Balé de Pancadaria. Um dia, num suspiro, tomou de assalto os versos do samurai Paulo Leminski, “não discuto / com o destino/o que pintar/eu assino” e desde então tem seguido com a pólvora e poesia que se pode experimentar a Vida.

 

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