Janela Poética II

Marcelo Benini

 

Ilustração: Ana Matsusaki

 

Ceifa

 

Chovia a cântaros pássaros do céu
No chão não sabiam ser pássaros
O encantador de fortunas, o rato
Mirava satisfeito seu intento
De fazer chover pássaros.

 

 

 

***

 

 

 

Ferida

 

Chegaram aqui as cercas de arame farpado
O arame roçava os bracinhos mestiços
E quando tentavam transpor os pastos
À dor do arame retrocediam

Encolhidos os braços
Deitavam-se à sombra
Excediam-se em valsas
De quinhentos anos.

 

 

 

***

 

 

 

Currais concretos

 

Celebrar a vida e seus horrores
Viver do torrão
Nada há para ser dito em linguagem humana
Amor só é possível o dos passarinhos

Mulheres-gado viajam em caminhões
Olham pelas frestas olhares de transe
Dia após dia alugamos nossa liberdade
(É dentro de mim que me perseguem).

 

 

 

***

 

 

 

Ossos

 

Ficam os cães porque querem
Por inteira vontade
De ao teu lado estarem
Mesmo com a intragável solidão
Teus estragados humores
Teus dias de câncer e tomografia
Tuas teorias existenciais
Ontologias não desanimam os cães
Ficam por tua carne ainda
Pelos dias em que exporás tua beleza
Pelo que podem ser de companhia
Nessa transitória feira de razões.

 

 

 

***

 

 

 

No hospital

 

Costuram há dias minhas asas
Danificadas
A longas distâncias e ao vento
Submetidas
Encontram-se em mau estado
Retido ao chão como besouro
Emborcado
Como abelha grudada no cabelo
Nada com o que atravessar os dias
Além do trespassar da agulha na carne
E observar o pavilhão dos amputados.

 

 

 

***

 

 

Nanquim

 

Aprendi com as árvores
A escolher um dia de chuva para tombar
E pôr a culpa no vento
Para que ninguém desconfie
Da minha imensa vontade de cair.

 

“Currais Concretos” é o quarto livro do poeta Marcelo Benini que vive em um núcleo rural próximo a Brasília-DF, Brasil. A poesia de Benini fala de suas experiências em contato com o Cerrado e de seus encontros com os passarinhos, as abelhas, a literatura e a filosofia. No prefácio, o escritor Ronaldo Cagiano escreve: “Currais Concretos encontra um poeta no auge de um fecundo exercício da condição artística. Sua voz poética parece reverberar um solo em que o artista transfere à palavra uma impactante melodia, um repertório de pura transubstanciação da realidade a partir de uma percepção nitidamente onírica e metafísica”.

 

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