Janela Poética II

Marcelo Ariel

 

Foto: Adelmo Santos

 

COSMOGRAMA 8

 

Eles eram como nuvens
de sangue
dentro do sonho
Havia uma tela no início
e ele estava perto de desertar
do sonho para o infinito efêmero
das imagens fixas
que escondiam algo
ele havia sonhado
que era uma bala perdida
e acertaria seu próprio coração
dez anos depois
como num conto
argentino
ou tcheco
havia um padrão
dentro do sonho
criado pela impossibilidade
de ver a si mesmo
ele era
como um pássaro
transparente
voando
na direção
de um céu
de carne
com ossos
no lugar
de estrelas
a bala havia
perfurado
seu tórax
ele ouviu
o enfermeiro
cantar
essa ária
para o médico
de plantão
na medida
em que a morte
se aproximava
ele ia se esquecendo
do seu próprio nome
e desertando de dentro
do sonho
o fundo branco
das paredes
mudava
para prateado
de acordo
com a intensidade
do som
de um oceano
cada vez mais perto
perfurando seu pulmão
ele ouviu sua voz
misturada
com a voz de
seu avô
dizer a fumaça
oceânica
haviam
duas águas-vivas
grudadas nos seus braços
e uma arraia
no teto
flutuando
por cima
de seu corpo
dela
saiam
orquídeas
vermelhas
que ficavam
paradas no ar
estas flores
são o tempo
ele se ouviu dizer
e depois
acordou novamente
dentro da água.

 

 

***

 

 

PARA MARIELLE FRANCO E ANDERSON PEDRO GOMES

 

O sangue
não pode voltar no tempo

como o orvalho
seca e avança
até o Sol

O grito
não pode parar a rajada
de uma metralhadora

como a água
dentro da onda
avança
e retorna sempre

 

 

 

***

 

 

 

ANTÍFONA *

ANTÍFONA

 

 

Ó Formas alvas, brancas, Formas claras

E aí, branquitudes, purezas, certezas

De luares, de neves, de neblinas!…

De clareiras, nuvens, névoas

Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas…

E aí, branquíssimas peles lapidadas

Incensos dos turíbulos das aras…

nuvens brancas atravessando avenidas cercadas

 

Formas do Amor, constelarmente puras,

Modos de se matar, celestiais estáticos

De Virgens e de Santas vaporosas…

Em estados líquidos, enevoados

Brilhos errantes, mádidas frescuras

Fosforescências efêmeras

E dolências de lírios e de rosas…

e melancólicas orquídeas vaporosas

Indefiníveis músicas supremas,

Inefáveis  mixtapes esquecidas

Harmonias da Cor e do Perfume…

perfeitas mas sem cheiros e sem lume

Horas do Ocaso, trêmulas, extremas,

vindo em ondas de  sangue  que o Sol queima

 

Réquiem do Sol que a Dor da Luz resume…

Velórios da luz no vidro que o projétil quebra

Visões, salmos e cânticos serenos,

Delírios, funks,  risos, celas

Surdinas de órgãos flébeis, soluçantes…

Ecos de toques de celulares nas biqueiras

Dormências de volúpicos venenos

Sonabulismos do beck com doce batendo na viela

Sutis e suaves, mórbidos, radiantes..

vagos e violentos, santos rostos faíscantes

Infinitos espíritos dispersos,

Duplos vetorizados, capturados  logo adiante

Inefáveis, edênicos, aéreos,

encurralados ao revés por  ancestrais , mortos, indigentes

Fecundai o Mistério destes versos

florescendo em galáxias distantes

Com a chama ideal de todos os mistérios.

na parte azul do sangue, nenhuma verdade

Do Sonho as mais azuis diafaneidades

alucinações em vermelho, nos olhos que se fecham

Que fuljam, que na Estrofe se levantem

que se dissolvam no refrão gritando não

E as emoções, sodas as castidades

com o sentimento sonoro, vertendo em espuma a interdição

Da alma do Verso, pelos versos cantem.

nas ruas as almas dos internos, crianças-onças-pardas

Que o pólen de ouro dos mais finos astros

germinando o sonho do mais fino grão do ser

Fecunde e inflame a rime clara e ardente…

sejam  flores, os que desabrochando debaixo do  chão e

Que brilhe a correção dos alabastros

como baleias  nadando no mar de esgoto , em sua amplidão

Sonoramente, luminosamente.

entoando para a luz , a ultima canção evocando

Forças originais, essência, graça

forças de dentro que jamais avançam em vão

De carnes de mulher, delicadezas…

através da pele mestiça e negra , docemente

Todo esse eflúvio que por ondas passe

dos rios soterrados,  subindo em ondas quentes

Do Éter nas róseas e áureas correntezas…

sobem, crescem, todos sentem

Cristais diluídos de clarões alacres,

tudo se refletindo em tudo, sem alarde

Desejos, vibrações, ânsias, alentos,

Eros regendo o ritmo das carnes

Fulvas vitórias, triunfamentos acres,

E aí, Branquitudes, a hora é agora!

 

Os mais estranhos estremecimentos…

a mais feroz doçura

Flores negras do tédio e flores vagas

desce até a piscina a matéria escura

De amores vãos, tantálicos, doentios…

de tristezas cósmicas, sem vagueza

Fundas vermelhidões de velhas chagas

fendas, falésias, fios, chamas, feras são

Em sangue, abertas, escorrendo em rios…..

sangram , fluem, pela água , antes represada

Tudo! vivo e nervoso e quente e forte,

cristalina fome de ser que vem do fundo, como a morte

Nos turbilhões quiméricos do Sonho,

vórtices, espirais de outra realidade

Passe, cantando, ante o perfil medonho

engolem vossos corpos, como  o  sono

E o tropel cabalístico da Morte…

chega para reger a manhã da insurreição

 

 

 

***

 

 

 

SIDERAÇÕES

GRAVITAÇÕES

 

 

Para as Estrelas de cristais gelados

Para os oceanos que vagam na matéria escura

As ânsias e os desejos vão subindo,

os sentimentos  vastos são atraídos

Galgando azuis e siderais noivados

como no casamento do Sol e da Lua

De nuvens brancas a amplidão vestindo…

a anterioridade de contrários se fundindo

Num cortejo de cânticos alados

num ritmo , pulsação e vibração contínuos

Os arcanjos, as cítaras ferindo,

crianças na ocupação cantam esse hino

Passam, das vestes nos troféus prateados,

dançando com seus corpos negros azuis e cabelos prateados

 

As asas de ouro finamente abrindo…

de uma revoada de pássaros no peito tatuado

Dos etéreos turíbulos de neve

fortes em porosidade etérea

Claro incenso aromal, límpido e leve,

doçuras moventes , risos firmes permanentes

Ondas nevoentas de Visões levanta…

atravessam o sereno

E as ânsias e os desejos infinitos

agem derrubando muros, tropas, policias, fascistas

Vão com os arcanjos formulando ritos

da insurreição dos proscritos

Da Eternidade que nos Astros canta…

ecoando a força infinita de um grito

 

 

* Poemas do livro inédito ESCUDOS BROQUEIS onde dialogo linha a linha com o livro de Cruz e Souza, criando através desse diálogo um novo poema formado pela união de dois poemas. É minha homenagem ao legado do poeta negro Cruz e Souza, que considero meu Mestre maior.

 

Marcelo Ariel é poeta e performer, autor dos livros “Tratado dos Anjos Afogados” (LetraSelvagem, esgotado), “Retornaremos das Cinzas para sonhar com o silêncio” (Editora Patuá, esgotado), “Jaha Ñande Ñañombovy’a”(Editora Penalux), entre outros. Em breve será lançado “Ou o Silêncio contínuo” – Poesia reunida 2007-2017 que está no prelo pela Kotter/Patuá.

 

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