Janela Poética II

Jorge Elias Neto

 

Imagem : Roberto Pitella

 

FOLHAS SECAS DE OUTONO

 

Paixão, esta folha de outono,
luz incerta de raio obliquo,
que desperta viva no entorno
do fogo, o tremor de um aflito.

Sou um ser do outono, de um crepúsculo,
que faz brilhar o olhar dos loucos,
e faz o horizonte fecundo
ao germe melancólico

dos suicidas, dos sem afeto.
E a carne, arfando, sem um rumo,
em busca de um pouso, de um teto,

tem no rubro da tarde o lúmen,
a medida de tudo, o concreto
do frio, da origem do Mundo.

 

 

 

***

 

 

 

SONETO SEM TETO

 

O tédio faz brotar o Eu perverso,
nos cantos esquecidos dos escombros,
e da sombra, o rugido do universo
surge na boca imensa do ser manso.

Pois se o calor emana da tristeza,
e a paixão é pólvora do selvagem,
o sopro faz tremer a chama acesa,
e a urgência é a medida da voragem.

E nada sobra que se preze e guarde
àquele ser que se debate firme
contra uma vida que esmaga e late.

Resta o engate ao cerne da maldade,
sem esperança, se atirar ao crime,
e ser centelha no porvir da tarde.

 

 

 

***

 

 

 

TERCEIRA MARGEM

 

 Para Flávio Viegas Amoreira


A terceira margem, fundo do rio,
aguarda, sob as águas, cada corpo
que pesa e se desprende em voo tardio
tal sonho derramado por um sopro

que faz pesar as pernas, os embustes,
esfacelar espelhos, cortar pulsos,
rogar com desespero por abutres
de voo carniceiro sobre os justos.

E se de tanto nada faz-se o vulto
que tomba do lajedo, da encosta,
se faz estranho o peso, absurdo

o baque sobre as águas maculadas,
é que há um segredo em cada bruto,
levado para o fundo da jornada.

 

 

 

***

 

 

 

O CORADOURO ETERNO

 

O mais é esta pressa interrompida
pelo abraço apertado da tormenta,
na engrenagem que faz fluir a vida,
que traga corpo e tempo na sarjeta.

Mas a luz, que rompe as nuvens convictas,
jaz corando a réstia do que foi presa
de si para si, predador e vítima
do extinto céu, e se tornou soberba.

E o curtume divino ressentido
do rebanho que se danou no Mundo
conta as perdas das reses que, perdidas,

romperam cercas, bem a esmo, imundas
de desespero retinto, suicidas,
buscando espaço nos varais da culpa.

 

 

 

***

 

 

 

SONETO EM CRISE

 

O perdido traz a marca na testa,
esboço do nome, falso retrato,
um corno – caligrafia da besta -,
revolta e um perfil de semblante amargo.

A fala que se esforça em verso, ofensa,
um desmentir inútil do absurdo
que transpassa o ser fútil e enlaça
a criatura com seu silvo agudo,

é um fruir da morte, certeza amarga,
disfarçada em hóstia, na boca posta
do infiel na catedral, mãe das gárgulas,

pois ser temente a Deus é fuga justa
ao que nega à morte sua carne e alma
e segue, hipocondríaco, em meio à turba.

 

 

 

***

 

 

 

SOBRE CASAS E PAIXÕES

 

Para Oscar Gama Filho

 

As casas têm segredos, todas têm,
e não é por medo que silenciam.
Suspenso, nas ranhuras, o desdém
das paredes frente à paralisia

de atores ausentes, sempre despidos,
carentes de desejos, de paixões.
E as casas, sempre lá, ao pé do ouvido,
propondo encontros, vultos, revoluções.

Cada verdade tola, cada cheiro, desperdício,
faz ponderar a casa: uma mudança…
Mas só engodo surge, de novo o vício

do estalo das palavras, vis lembranças,
que nos cantos da casa, feito lixo
do não mais viril, mas da vingança.

 

Jorge Elias Neto (1964) é médico , pesquisador e poeta. Capixaba, reside em Vitória – ES. São de sua autoria: Verdes versos (Flor&cultura editores – 2007); Rascunhos do Absurdo (Flor&cultura editores – 2010); Os ossos da baleia (PRÊMIO SECULT – 2013); Breve dicionário poético do boxe (Patuá-2014); Glacial (Patuá-2015); Cabotagem (Mondrongo-2016); Breviário dos olhos (Edição do autor – 2017); O ornitorrinco do pau oco (Cousa-2018) e Sonetos em crise (Mondrongo-2020).

 

 

Clique para imprimir.

Comente

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *