Helena Arruda
Corpo-cicatriz
meu corpo-mundo é conquista diária,
ponte entre a natureza e o caos:
desejo-essência-sofrimento-luta.
[resistência]
moro em cada corte do caminho:
no meu ventre, nos meus seios,
no meu assoalho pélvico,
nas minhas entranhas, na minha voz.
meu corpo, cartografia de quereres,
é um mapa,
paisagem milimetricamente desenhada,
cicatrizes que dão a exata direção:
rios e montanhas e
mares e oceanos e
planícies verdejantes e
areias quentes e
vales profundos para sempre tatuados por um bisturi,
para estancar minha dor
[não estancou].
meu corpo-cartográfico hoje é pele suada por seus sais,
palmilhado por suas mãos generosas, calmas.
corpo demarcado por seus beijos e
guarnecido por suas palavras macias, amáveis.
[corpo-multidão].
***
Roupa sem corpo
[ou releitura]
hoje,
o melhor corpo para minha roupa
é aquele descoberto
das exigências
que o tempo traz.
***
Roupas velhas
minha dor são flores descoloridas
[do meu jardim]
que duram o tempo necessário
[saturação]
parto e permaneço aconchegada a mim
meu corpo, pedra áspera
à mercê das águas da cachoeira
[espera]
equilíbrio e falta,
estar e não-estar
sou pedaços de roupas velhas
cerzidas pelas agulhas do tempo
vejo todas as veias pulsando
na imensidão do meu corpo:
[pulso-sangue]
[mundo-pulsa]
vivo na emboscada da vida
minhas mãos envelhecem
à medida da minha dor
meu corpo é dor e desejo,
viço e cansaço
[grito]
na feitura do meu poema,
desfaço nós,
construo espaços
e atravesso sombras
[enxergo]
***
Amor
sei que é possível transcender pequenezas
transcendo o azul-griverdoso dos seus olhos baços
e sigo
[lutando]
a vida é mais que existência
a vida, meu amor,
é resistência.
***
Espaços
quando começo a pensar no espaço que ocupo,
penso nas palavras
e folhas em branco
meu espaço então se torna habitado,
porque o azul do infinito sobre ele
o preenche de riscos
que se entrecruzam
e formam palavras
se as palavras fazem sentido?
não sei, arrisco
aprendi a inventar mundos
e a ocupar espaços
com a tinta da imaginação
e o borrão da memória
nada mais.
***
Istmo
ela trazia o azul do mar
na vastidão da alma
[corpo]
e as montanhas,
entre o istmo e o coração
[sentido]
curiosa, escalava
incessantemente a vida
na tentativa de encontrar
o sol.
[liberdade]
Helena Arruda nasceu em Petrópolis, RJ. É mestra e doutora em Literatura Brasileira (UFRJ). Poeta, contista, ensaísta, é autora dos livros “Interditos” – poemas (2014); “Mulheres na ficção brasileira” – ensaios (2016), ambos pela Editora Batel; “Corpos-sentidos” (2020), Editora Patuá; “Há uma flor no abismo” (poemas) e “Mulheres de A à Z” (contos), com lançamentos previstos para 2021. Suas publicações mais recentes constam do livro de ensaios, “Ficção e travessias: uma coletânea sobre a obra de Godofredo de Oliveira Neto” (7Letras, 2019), do livro de poemas antifascistas, “Ato Poético” (Oficina Raquel, 2020) e da antologia “Ruínas” (Patuá, 2020).
A vida é mesmo resistência!