Janela Poética II

Bruna Salgado Baldez

 

Ilustração: Marjorie Duarte

 

Retórica

 

Meu silêncio
é onomatopeico
e sinestésico:

tem som de branco
e cor de léxico.

 

 

 

***

 

 

 

Percurso de um vocábulo

 

Do conceito
nasce a palavra
perdida, indefinida,
sintaticamente
inexistente.

Em vozes vertida
ganha uso, ganha vida,
desfaz e refaz
a sua morfologia.

Variável em geografia
mal atribuída
confundida
semanticamente
dependente.

Evocada por mestres,
Drummonds e Severinas,
enuncia e anuncia
a sua polissemia.

 

 

 

***

 

 

 

Endotérmica

 

Permita-me ser,
na discrição de meu canto,
este pequeno espanto
em velado e tímido pranto.

Aceita-me
na minha inteira delicadeza
no meu balançar modesto
na minha insonora leveza.

Deixa-me
embrenhar-me em meus versos
misturar-me às rimas
metrificar-me
até que eu lhes seja ímã.

Exponha-me
somente em palavras
quando eu não mais houver;
quando as sobras
de mim
forem brasas.

 

 

 

***

 

 

 

Corpo-linguagem

 

Ao mundo abstrato renuncio
para concretizar-me
em palavras.

A todos os deuses renego
para cultuar-me
entre linhas.

Costurei-me poesia
– sou inteira cicatriz.

Eu só existo
por escrito.
Sobrevivo
à flor do lápis.

 

 

 

***

 

 

 

Não quero cantar o medo, não quero cantar a morte. Não quero ser autora deste tempo e espaço. Não quero ser um retrato da época, a cair pelo mesmo buraco.

Quero um corpo transcendental, que exista e escreva d’outro lugar. Quero simular vidas de outrora. Quero narrar memórias de outrem. Quero apartar o tempo vigente da minha palavra inocente.

Quero ser a poeta dissimulada – e não esta (ao chão acorrentada).

 

 

 

***

 

 

 

Meu grito é gravado. Minha luz é elétrica. Planto flores de plástico. Tenho olhos envidraçados.

Meu cérebro tem radares, mas não sente, não reage. Fui cultivada in vitro.

Protótipo da humanidade, sou projeto aplaudido.

 

 

 

***

 

 

 

Às vezes penso que a vida acontecia antes.

Comecei tomando diariamente algumas doses de tempo passado, de forma a anestesiar o presente. Notei que, à medida que as engolia, os membros do corpo lentamente adormeciam. Fui perdendo minha habilidade tátil. Meu olhar passou a beirar pelas laterais, as pálpebras semicerradas. As memórias resistiam e se derramavam, paralisando cada órgão. Um minuto a mais e eu me desacontecia.

Hoje, inebriada de passado, sou apenas uma lembrança ambulante, sonâmbula. Não há mais um corpo presente para morrer. A vida já aconteceu.

 

Bruna Salgado Baldez nasceu em 1992, é natural do Rio de Janeiro (RJ) e reside em São Paulo (SP) desde 2019. É graduada em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pós-graduada em Língua Portuguesa pelo Liceu Literário Português, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Atua como preparadora e revisora de textos na Universidade Paulista (Unip). É autora do livro de poemas “Armadura lírica”, recém-publicado pela Editora Patuá (2021). Participou da Antologia “Ruínas” (Ed. Patuá, 2020), foi selecionada no Prêmio Poesia Agora Outono (Ed. Trevo, 2019) e premiada no 1º Concurso Literário AMCGuedes de Poesias e Contos (Ed. AMCGuedes, 2015).

 

 

Clique para imprimir.

Comente

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *