Janela Poética II

Carla Diacov

 

Foto: Lu Brito

 

x
sobreviventes deitados trocam
figurinhas repetidas
experiências amorosas repetidas
de bruços trocam
feito meninos que tocam trocar
sorrisos enigmáticos repetidos
trocam até cascalhos repetidos
balançam os calcanhares no ar repetido e trocam
viram as barriguinhas para o céu
trocam o curso das nuvens repetidas
trocam andorinhas repetidas
repetem TROCO NÃO TROCO TROCO
trocam as pernas de lugar
trocam o lugar de estado
os joelhos com os joelhos dos joelhos mais jovens
o de joelhos tortos repetidos
trocam hálitos repetidos
trocam ar
sobreviventes trocam tudo
apontam calor nós nos cabelos
trocam fluidos inevitáveis repetidos
furos de guerras ecoadas
trocam repetida a terra de lugar
dormem com raízes parecidas a joelhos
sobreviventes dormem repetidos
de repetidas mãos dadas a sonhar
incertas repetições mais
exatos epílogos mais

 

 

 

***

 

 

 

:
não me sinto tão
bem nunca me senti tão capada
não tenho a memória de estar
vibrante “As they say on my own Cape Cod”
sinto que deveria ter me dedicado ao
arco e flecha como dediquei o pescoço
à leitura de teorias UFO
acordo com essa pança cheia de melancolia
olho minha mãe me olhando
minha cachorrinha me olha olhando minha mãe triste
já fui pega olhando uma lata
de molho de tomates no lugar errado
o rapaz me pegou pela mão perguntou meu nome
perdida mora por perto está sozinha
entre ervilhas eu disse
o molho entre ervilhas
comprei caqui mole e bistecas de porco
comprei a serralheria dos ouvidos açougueiros
nunca me senti tão amputada
o caminho me levou até minha mãe
minha cachorrinha olhando minha mãe triste me olhando morta
acho que seu pai tinha isso que você tem
e isso veio da conversa com a psiquiatra
isso não tinha CID e eu tenho pensamentos mágicos
trocamos a cidade a psiquiatra
me sinto bem pior
agora que sei ser vibrante com a não compreensão
do tigre CONVIVER
sei e posso e alcanço falar sobre minhas deficiências
sobre meus distúrbios
e isso assusta muito quem não me vê babando
errando as pernas letras assusta não conhecer
devo ser mesmo esse caqui mole olhando
a lata errada nos mercados
carla
ninguém fala moléstia no poema
carla é só uma lata fora do lugar
carla
“As they say on my own Cape Cod”
a vida é bonita e cheia de coelhos com trevos entre os dentes
o rapaz mais famoso da minha estante
me puxa pelos cabelos
perdida mora por perto está sozinha
uma lata errada
“a loucura é portátil”

é claro que a lata não é errada
carla e a lata
“As they say on my own Cape Cod…
partners in prosperity.”

 

 

 

***

 

 

 

x
o sobrevivente estende as mãos à estátua
o ritmo dos joelhos
o pão ainda cru
obscenidades
algumas razões
quinas duns pensamentos
mas chora
o sobrevivente estende as mãos à estátua
mas chora
o sobrevivente teme o caminho da lágrima na mão embrutecida
chora toda a sede da goela
mas estende as mãos
mas contorna
um ponto além do contorno duro
contorna
imita
estende a biografia do nariz
o sobrevivente afia a moela e cisca o assoalho
ESTOU PERTO ESTOU BEM PERTO
o sobrevivente e algumas razões
o pão ainda cru
mas pão

 

 

 

***

 

 

 

:
estender a asa norte e
sair feito uma garça rodada
eriçar a última pluma e sair
feito uma pavoa mentecapta
esticar as unhas e sair feito
um galo tarado espichar o sal
e sair feito um flamingo excessivo
arrepiar o bigode e sair
da moita em espasmos apaixonantes
o pescoço é o pêndulo da coisa penada
abraça um queixo meu peito pombo
bica uma pena que me coça a chaga da coisa penada

mania ave
de quantos bigodes precisa uma mulher para sair?

 

 

 

***

 

 

 

:
tenho uma memória inquieta
tenho um pescoço de criança
conforto em lã com cheiro de avô
lavanda
canela com leite morno
nada mau
diriam
para uma casa abandonada
nada mau
dizem
nada nada mau
comenta quem acabará por morder meu pescocinho mofo

 

 

 

***

 

 

 

:
no inverno
vou jogar meu pescoço para trás
largar um pensamento horrível no cúmulo
de uma pedra sob o sol
faço por você
mostro um pedacinho da minha arquitetura
por você
para que você não fique com a impressão
e sim com a certeza:
não sei lidar com meu próprio sumiço
com a destruição
palmo a palmo
daquilo que em nós dois
soma estações tectônicas com
flores daninhas entre os desencaixes

 

Carla Diacov [@diacovcarla] nasceu em São Bernardo do Campo em 1975. Lançou os livros “Amanhã alguém morre no samba” (Douda Correria, 2015/Edições Macondo, 2018), “A metáfora mais gentil do mundo gentil” (Edições Macondo, 2016), “Ninguém vai poder dizer que eu não disse” (Douda Correria, 2016), bater bater no yuri (livro online pela Enfermaria 6, 2017), “A menstruação de Valter Hugo Mãe” (editado pelo escritor português, no projeto não comercial Casa Mãe, Portugal, 2017) e “A munição compro depois” (Cozinha Experimental, 2018). Os poemas aqui apresentados estão no próximo livro de Carla Diacov, : “pescoço x sobreviventes”, que sairá pela Garupa. 

 

 

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