Janela Poética II

Lucio Carvalho

 

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Foto: Gilucci Augusto

 

Mergulho

 

Tão poucas chances de entender
como os animais escolhem aonde ir
– mas é tão bom não saber
o que o vento é e senti-lo –
nem como a água molha e banhar-se
num silencioso e profundo mergulho
de onde não houvesse retorno
e ser peixe como num sonho
em que fosse apenas questão de escolher
entre o retorno e o borbulho.

 

 

 

***

 

 

 

Chuvisco de inverno (kanakana shigure)

 

Por muito pouco tempo,
tudo faz sentido.

É quase impossível saber
que tudo se dissolve

qual um arco íris
que não se alcança,

num jardim pleno
onde nada grita, nada urge

e nada é maior
que estar ali.

E logo somos tão velhos
até para erguer as patas…

Será bom que outros animais
possam levar-nos

e ainda é melhor
que nos acordem mais cedo.

Sou movido por um livro
cujas palavras estão soltas.

Se me pegarem pelo alto
então posso rir à toa,

mas mesmo isso dura pouco
e nem faz tanto sentido.

O acorde no piano me acorda
ou é esse chuvisco eterno?

Não devo mostrar meu rosto
até que termine o inverno.

 

 

 

***

 

 

 

Não importa o que leve dentro,
quanto mais toco em meu centro

o sal entra em mim e determina
o que sou, me contamina

de sódio, como ao mar,
até matar.

Ser afogado até era melhor,
mas a isso não poderia chamar: amor.

 

 

 

***

 

 

 

Zazen

 

Se a queda não
continua nas
folhas
e tanto a nitidez
absoluta
da noite
quanto o rumor
perpétuo
da água
jamais
sobrevivem
ao instante,
para o que
é que
olhas?

 

 

 

***

 

 

 

Revoada

 

Lendo assim,
desde a primeira letra
o poema é relâmpago
sem trovoada.
Voz absurda
e dissonante,
pássaro avulso
na revoada.

 

 

 

***

 

 

 

O sul

 

Deste braço até a Ásia,
são dois oceanos
de monstros decepados.

Da cabeça até o norte,
há um palhaço
de pernas para o alto.

Do lado em que o sol se põe
até o fim (anoiteceu),
não há ninguém.

E aqui, até você (Vésper insone)
já esqueceu
meu nome.

 

Lucio Carvalho nasceu em Bagé (RS), em 1971, e reside atualmente em Porto Alegre (RS). Foi por uma década (2008 – 2018) redator e editor do portal e revista Inclusive, premiada em 2010 com o Prêmio Nacional de Educação em Direitos Humanos, pela OEI/SPR. É autor do livro de contos “A aposta” (Ed. Movimento, 2015), do livro de artigos e ensaios “Inclusão em Pauta” (Valentine, 2017), do romance Trapézio” (Valentine, 2019) e outros. Em 2019, cursou a especialização em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e publicou “A crise da representação rural na literatura rio-grandense” (Editora Fi, 2021). É editor no selo Valentine e edita a revista literária Sepé.

 

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