Janela Poética II

Cristina de Souza

 

Ilustração: Drika Prates

 

Soterramento

 

Soterro a voz.

Aterro meu corpo
A um espírito mudo.

E em tudo que escuto
Só há silêncio

Marcado na ausência,
Na vaga.

No luto profundo
Pelo morto não morto,

Pela onda não quebrada,
Por esta maré vazante

Onde me afogo
Na terra,
Na areia
No nada

 

 

 

***

 

 

 

Identidade

 

Escondo-me
Por horas a fio
Enquanto me busco no espelho.
Finjo serem meus olhos,
Os olhos que me fitam
Sem me reconhecerem.

Hiberno
Dias inteiros
Em pelos que não são meus,
Em ossos que se fraturam aos poucos
Sem que eu os perceba.

Durmo
Numa caverna escura
Chamada quarto,
Aonde jaz uma cama branca,
Onde morro todos os dias
E moro todas as noites.

Risco
meu nome na identidade
perco
a foto na carteira
Apago
Minha face com a manga puída de um casaco velho

Esqueço-me
Numa gaveta.

 

 

 

***

 

 

 

Farpa

 

Descubro-me num
verso aberto, na
farpa do mundo.

Traço meu rastro
no deserto mudo.

Cactos secos em
solo rude e
céu vermelho.

Eu piso em pedras e
cascalho, madeira ressecada,
casca de árvores mortas.

Cabelos misturados à areia,
olhos que suam, sal rolando
de poros e escleras.

 

 

 

***

 

 

 

Cantiga

 

Sou feita de ecos
E ocos.
Sou filha da noite
Escura e sem luar.
Sou a santa pecadora
De palavras extintas
Coleciono preces que invento
Sem saber orar.

Sou cheia de ocos
E desfeita em ecos,
Canto uma canção de ninar.
Fogo brando é chama e vela,
Minha vida paralela,
Projetada numa tela,
Eu que já nem sei chorar.

E esta espera pelo amor
que não vem,

nunca vem.

Dias contados, rosto
marcado por rugas
que não tenho.

Noite cadente,
vida vertente.

A verdade é um soslaio,
enquanto a farpa enterra
a esperança na pele quente.

 

 

 

***

 

 

 

Invenção

 

invento a madrugada.

planto a manhã
com dedos hábeis e

do espelho azul do céu
minha espera germina.

minutos e horas
se vão,

cedo ou tarde
a luz confunde
o sol
com a lua cheia
prenha de prata.

arranco
a erva daninha
que brota dos meus pés,
raízes
me imobilizando:
cresço árvore

dos galhos do meu corpo
braços se movem
ao balanço do vento,

e minhas folhas dançam
em seda verde,
ondas sem mar.

espreito o poente,

recolho-me na noite,

o orvalho me abraça,
estrelas brincam.

durmo e amanheço
flor aberta
entranhas à mostra
corpo exposto

renasço
sou apenas eu
ser sem espírito
ondulando
meus espinhos secos
ao sabor do dia

 

 

 

***

 

 

 

Sem Rumo

 

sinto-me oca,
vazia
até a boca,
sigo só
a esperar.

espero
pelo nada,
tua risada,
meu medo,
nosso desencontro
e este desespero
de chegar

em qualquer lugar.

aterrizo
dentro de mim
cansada
e faminta
de luz

o escuro pinta
a noite sem fim
enquanto desperto
onírica
no azul profundo
deste meu
quase mundo,
onde meus olhos
se desvendam
nus.

 

Cristina de Souza é médica e poeta, vive em Fênix, Arizona, onde escreve e pratica medicina. Ela já teve vários poemas publicados em revistas literárias nos Estados Unidos e Europa (Inglaterra e Alemanha) e outros publicados pela revista Mallarmargens no Brasil. Em 2016, obteve um mestrado em literatura e composição literária pelo Vermont College of Fine Arts  e em 2019 teve um livro de poemas em inglês publicados pela editora Main Street Rag, intitulado “Grammar of Senses” (A Gramática dos Sentidos).  Seu email para comunicação é: colo2309@gmail.com. Seu livro “Quase Azul” está no prelo e deve ser publicado em novembro de 2022 pela Kotter Editorial.

 

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