Janela Poética II

Vivian Pizzinga

 

Foto: Magali Abreu

 

fato

 

é o aço do fracasso o que entope a goela nua.
tusso.
é erro crasso tentar
continuar.
vilipendio a sola do pé toda vez que ando.
raspo a pegada do chão ralo.
cuspo meu passo e manco
engulo o choro rascante ácido.
paro.
olhos bordejam o fato
pulmões inférteis sem ar.

 

 

 

***

 

 

 

viga-mestra

 

coleciono noites. olho aberto deslizando impune sobre prateleiras, livros, cinzeiros, hélices de ventiladores, olho aberto avançando sobre os escombros do que sobrou do dia. há certa mudez ressoando nos quadriláteros adjacentes à sala estupidamente calada. coleciono delinquências íntimas no caminho do baixo ventre, eloquência insuspeita que não deixa pistas, caminho borrado das 3 da manhã ou mais. coleciono horas mortas em dias úteis, escassas tardes no que há de ar nos pulmões, e é quase nada. coleciono asfixias, apneia viga-mestra num punhado de hesitações, olho aberto percorrendo a dúvida, vida esporádica percorrendo o chão. na contabilidade dessa vigília endêmica, é dia sim, dia não que se dorme. coleciono olhos abertos em seu escrutínio pela noite desprovida de bordas, avermelhadas pupilas de quem há muito se perdeu do caminho do sossego. e note: nenhuma gota a mais resolve o impasse. coleciono solilóquios. deslizes. dias amanhecendo em qualquer época do ano.

coleciono ecos.

 

 

 

***

 

 

 

alameda

 

entre o núcleo rugoso da dor e o outro,
surdo interlocutor,
quilômetros.

mas não só:
gargalhadas genuinamente alegres
preenchem uma alameda insuspeita.

o que se mostra é parcela ínfima
de um território sombreado.
geringonça parcial,
simulacro de fatiada existência.

o que se mostra é nada.

 

 

 

***

 

 

 

noite

 

é que somos todos contradições, impossibilidades, limites. fajutos recortes, terreno infértil, dores que galopam o corpo.
é que somos todos as lacunas que tapamos com a mão e alocamos no diâmetro da penumbra.
é que somos todos penumbra e caminho aberto, bocas conversando entre si (você no escanteio), bocas discutindo entre si, quando o mais certo seria fechar os olhos e dormir, à noite.
é que somos todos noite que não acaba nunca.

 

 

 

***

 

 

 

cerco

 

rasga a carta.
garrancho fronteiriço concebido no instante do esquecimento
desmemória ficcional
união estável entre certa saudade
e obtuso perdão.
palavras entupidas no aparelho fonador
discurso desgrenhado entre a garganta
e o sopro
semanticamente está perdida
destroçou glossários
estourou as últimas canetas bic pretas rolando por aí.
a noite ecoa na casa vazia
tabefes de lucidez espantam o sono
lista de arrependimentos arranham sua voz enguiçada.
nos intervalos da vida
persegue as respostas
fantasmas sem rosto ainda promovem o cerco.
é tarde na noite baldia
rastreia os últimos instantes de paz que rolaram por ali.

 

 

 

***

 

 

 

lógica imberbe da vida

 

os dias desagregados,
lógica imberbe da vida,
faziam-lhe mossa nos olhos e dentes.
lonjuras de desânimo vencido
curtido
desenhavam-se no semblante planície.
o desespero da alegria alheia
excesso de cores e gestos
lanhavam a superfície preguiçosa da casca.
cansara, enfim, da faina
e de certa loucura embevecida
sob medida.
cansara
e era preciso admitir.

 

 

 

***

 

 

 

parêntesis

 

quero entrar entre parêntesis, ficar ali de butuca, desviando da vida, driblando os fatos. dar uma parada no giro ao redor, espiar (imune) os quiproquós. quero respirar sem ruído, evitar os perigos, ser distante de mim. quero voltar atrás e pular etapas, desenhar meus dias, colorir a semana inteira, pendurar a arte no mural. antes que não dê mais tempo, quero um parêntesis sabático.

 

Vivian Pizzinga é escritora e psicóloga. Lançou Ruído nos Dentes (Urutau, 2022, poemas), A Primavera entra pelos pés (Oito e meio, 2015, contos) e Dias Roucos e Vontades Absurdas (Oito e meio, 2013, contos), além de ter participado de outras coletâneas de contos e prosa poética. Tem doutorado em Saúde Coletiva pela Uerj.

 

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