Karine Padilha
Quase
Estamos prestes a alcançar o fim, num suspiro de quase nunca
Pegando fôlego nos dias de quase lá
Nos sonhos que vem tarde para os sonhadores
Onde o tumulto que fala
É também o que faz calar.
Nas linhas de chegada,
Nos postos de largada,
Um sufoco rumo ao quê.
Estamos prestes a alcançar o nunca, num suspiro de quase fim
Pegando fôlego nos dias abandonados
Nos sonhos que vem tarde para os sonhadores
Onde a mão que toca
É também a que perde o tato.
***
Tudo se consome
Negam-nos sempre um pedaço
Falta-nos sempre uma coisa
Extraviam-nos sempre uma parte
Tamanha dor, arrancam-nos sempre um membro:
O tempo.
Os brincos nos assoalhos
Os descuidos
Os anos
Os erros
Esperamos aflitos
Que se desfaçam
Que Deus perdoe
Que não se percam.
Tudo se consome.
***
O que se inscreve também se esquece
Deixar escapar
Pela ponta dos dedos
[como quem luta contra a lembrança]
Uma pista qualquer
Que leve de volta
Ao começo do poema:
Sonhar de corpo inteiro.
Sonhar
De corpo
Inteiro.
***
Aqueles que caem
Eu escrevo para os homens que não sabem ler
Mas desconfiam
Do que dizem os poemas.
Eu escrevo porque tenho urgência de enunciar aquilo que a palavra não segura
Que não é letra nem vocábulo
Que não cabe no espaço
Que é o outro não visto, e bem conhecido.
Eu escrevo porque há um declive não mapeado no mundo
Não um lugar, mas um jeito de cair
Que derruba os desconhecidos a cada segundo
Eles desabam pra sempre
Desabam a sós
Sem ler os poemas
De boas novas
Por que os poemas
de boas novas
Não são feitos
para aqueles que caem
E é, também, porque posso cair,
que eu escrevo.
***
As coisas do mundo
As coisas do mundo estão todas espalhadas cercadas, escravizadas.
Foram cedidas e foram negadas
Negociadas
Esquecidas
Escondidas
Empoeiradas
Incendiadas
Esbanjadas
Suplicadas
Negligenciadas
Os donos das coisas do mundo
A troco do giro da manivela
Apossaram-se do tempo
-Que passa
Da vida
-Que passa
Agarraram-se com as mãos à terra, ao umbigo, às suas mulheres, aos seus pertences, aos seus chapéus e à ventania,
Porque do outro lado do muro os puxava a morte.
O cabo de guerra da imortalidade:
O desespero de provar-se vivo pelo peso que se carrega
O pavor de sentir-se morto pela entrega.
As coisas do mundo,
Toda e cada coisa,
Consumida
Consumada
Não salva o homem do fim do homem
Não salva, no fim, o homem de nada.
***
Distâncias
Quão seguro é percorrer a distância de um homem
E que aterrorizante é chegar ao fim do percurso.
Um trilho de trem comprimido por um incidente.
A proximidade de um longo intervalo de tempo.
Um fio de vida
Onde a morte pendura os sapatos.
Tentamos enxergar do outro lado
Tentamos atravessar os lados,
Mas todas as pontes cedem sobre os abismos.
Nunca
Corremos
Por essas
Estradas
Que são os outros.
***
Coragem
Enfrentarei a metodologia
A burocracia
As reuniões de trabalho
As oposições políticas
As exposições artísticas
O dólar
A cor dos olhos
O ego
O desencanto
O desacato
Por uma bagatela de quase nada aceitarei de bom grado
A confusão que me causa a felicidade.
Não minto que perdoarei as mentiras
E as dores
Que o ser humano provoca sem admitir que lhe sejam infligidas.
Sobreviverei ao homem que deseja casar-se comigo,
à omissão de minha mãe
Aos golpes de desafeto
Ao tiro disparado em vão contra mim
Pelas mãos de meu melhor amigo
[esfolado pelo ombro daquele que me odeia] Serei acusada
Perdoada
Santificada
Esquecida.
Seguirei em frente, enquanto louca
Sem vias de ida ou retorno
Cheia de ter com o vazio
Disputando um braço de volta.
Karine Padilha está no espectro da dupla excepcionalidade (autista com altas habilidades), é artista visual e neuropsicóloga brasileira. Ao longo de sua trajetória escreveu para o grupo editorial multimídia de poesia brasileira Aboio, para a revista nacional de arte e cultura Pixé, e para a revista internacional de arte e cultura Trama. Seu trabalho integrou mostras nacionais e internacionais, entre elas Universidade Federal de SC – UFSC, Art Lab Gallery (SP), Salon Caw (Portugal), CAM (Espanha). Com uma escrita contemporânea, inspira-se em autoras como Ana Martins Marques, Aline Bei e Matilde Campilho para explorar temas existenciais e psicológicos. Seus textos e produções visuais aprofundam-se em questões de identidade, memória, vulnerabilidade, e efemeridade, criando uma atmosfera nostálgica e introspectiva.