Janela Poética III

Stefano Calgaro

 

Foto: Luiz Bhering

 

Ouça, rosto ungido pelo vento
as menores cascas estão secando a umidade dos canais
não era mentira quando disseram que a barreira iria mudar a rota e a construção de nossas casas de areia
mas mesmo assim o hibisco preso atrás da sua orelha representa a sua ordem imperativa de paz
combina suas marcas vermelhas com o dourado cerrando suas pálpebras de ferro
e não se deixe fugir
ouça,
não se deixe fugir como uma forma de medo pela aniquilação
não deixe de ouvir o vento empurrando sua franja para os montes
não deixe de bater os dias com um pé e com as mãos que recolhem as farpas
não deixe fugir sua vantagem

 

 

 

***

 

 

 

roo e agradeço às pequenas coisas
por expulsar os estertores da memória
que deixam num facho os dias congelados
como que de púrpura
e a memória aberta
não estanque……………………ao sol aberto
vendo com olhos semicerrados que uma pessoa é sempre a minha melhor ferida
e por isso tenho vivido sempre entre os seres inanimados e os animais domésticos para ver amar de novo
ver outra cor espraiar do terceiro hemisfério
ver outra cor espraiar dos horizontes
quase sempre semicerrados
mas ainda abertos

 

 

 

***

 

 

 

É chegada a hora que você se espanta com o osso que sai do meu peito
eu confiro a profundidade do seu umbigo com meu dedo fura bolos
por baixo do lençol a história de suas estrias de quando você cresceu rápido demais
por baixo dos meus pelos a história de minhas estrias de quando emagreci rápido demais
a altitude dos meus calos faz novas linhas na tua mão como brancas tatuagens de hena
suas cicatrizes que se encontram nas mesmas partes que as minhas cicatrizes se encontram
a sua mancha de limão na barriga formando um mapa da américa latina
Você vê agora até que ponto aguentam meus cabelos
corpo a corpo
medindo as travessias e até que ponto aguentamos as distancias a nado à ausência e à euforia
enquanto cambiamos entre a primeira a segunda a terceira pessoa
como alguém que é e foi e já não é
e vemos que parte é inteiramente nossa
irreproduzível
em todos os corpos que achamos ao longo de nossa curta vida até aqui
o meu arrepio o teu arrepio se encontram
seremos os desconhecidos mais íntimos que já pousaram os olhos nesta terra
serei muito em breve a tua sombra indômita

 

 

 

***

 

 

 

Aos que herdaram essas terras
deixaremos buracos e sustos
ensurdecendo seus talhos em nós
lasseia agora o amor esquecido
pelos sismos diários e uma jornada
mal posso acreditar que sobrevivi ao domingo
mal posso acreditar no ruído acoplado à candura
deixaremos um dilúvio
para o planalto
e um alívio
para as moscas
e com nosso peito exposto
saberemos que este amor
fabrica nossas armas
e o nosso grito plana nas ruas
avisando

 

 

 

***

 

 

Sinto que quando falamos medo
Tem sempre alguma outra coisa em que estamos esquecendo

 

 

 

***

 

 

 

acha-se em farpas como um dom que não sabe por onde irá romper
quando os obeliscos nos apontam feridas as estradas virgens
não é nenhuma má intenção perguntar dos quatro compassos que já não são
rompo as levadiças para ver se acham nessa cidade o que buscam em outra
só para então forçá-los para fora do meu sistema e do meu canal
aqui nenhuma peça está faltando
o mais difícil mesmo será correr olhando os anúncios
achar o pulso pensando se há sangue pelo lado de dentro e de fora
e se já não é mais o mesmo do que corre por dentro
já é um sistema externo um passado
já não tem um ritmo
eu deveria me preocupar com a minha dieta e comparar com a dieta de alguns mamíferos em particular …………..da baleia e do morcego
por que cantam e fluem
por que espremem a espinha dorsal às cores
por que precisam de um meio.……………e de um som

 

Stefano Calgaro (1991) nasceu em Porto Alegre e vive em São Paulo. “Pequena volta” (Pátua, 2019) é seu primeiro livro.

 

 

Clique para imprimir.

Comente

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *