Janela Poética III

Galvanda Galvão

 

“Muita fumaça na cabeça”: Claudio Parreira

 

3la

 

ela acendia todos os cigarros
adorava a memória dos dias
a pressa e as caixas
globos de fogo nas mãos, a corrosão

no burburinho do barco ouvia-se toda a família
a mãe o irmão da mãe o pai numa fotografia obscurecida
não se falava ali
ela insistia numa cantilena
não a conheço e a amo
inventava sinais pra abrir labirintos
vozes nos corredores
a indeterminação
a sombra
a repetição  –  fica
demoro-me numa obra aberta
espero o mar

 

 

 

***

 

 

 

se você me encontrar? atravessa-me

 

ela sob a muralha da China
instinto de liberdade diz
a companhia presente de solidão
mão pé um corpo nas manhãs
a noite não tem cor
grafava as linhas caídas do papel
abstraía vendaval com barbitúricos
a massa gritada no comercial atrás da porta
a raiz quadrada
o fazer
havia um nome no indeterminável
não ser ela resquício de existência
meudeus
triturava as correntes o sal
a barbárie no giro do relógio
quebrar a cabeça
soprar as minhocas

estamos e não estamos
num mundo voluntariamente sibilino
precisão de certeza

 

 

 

***

 

 

 

protocolo clinico e diretrizes terapêuticas
essas palavras ecoaram quando desenhava o risco
Michaux num alfabeto não nomeado
todas as letras escapavam
davam-nos sinuosas sombras
fechava os olhos
círculos birutas prolegômenos ou introdução
o feminino são dois
pedras adensavam a ventania
meu suor e medo estáticos
raízes em doses homeopáticas

um bárbaro pinta Beatriz vermelha
performance erótica de um anjo
contra uma identidade trágica a violência da serpente
rasgava a bula
não acentuava palavra

 

 

 

***

 

 

 

ela pensava as trilhas com K
no Egito o sol tem os braços peludos

nos mínimos detalhes
o pertencimento
a realidade no caos reverbera

perto desarranjava
a língua os objetos
fora de lugar
único e multiplicado
pele transparente
pulsa ante a força aquática
o que está junto se mistura

palavra-mão
o infinito
pergunta insistente

sem pressa continuar

o vão o silêncio a montanha
na pedra o deserto
superfície, abismo
memória instantânea
o corpo extraviado
o que fica da aparência
vigor destilado
cadente morte
…………………………………………. [outra

 

 

 

***

 

 

 

o peixe elétrico
saltava Sodoma
em verso Dionísio
havia de beber
uma precisa liberdade
cogitava montanha
era rio
singular obsceno
tocava estrelas
viragem
explodia num corpo seu outro
guelra sangue coadunado
na pedra penetrava
lusco fusco burburinho
memórias acendiam o presente com cara de homens
a rede a morte
estendia olhos e dentes
ele sabia voar guardava um desassossego

 

 

 

***

 

 

 

Ela n.2

 

as mitologias nas prateleiras
num não lugar, diz-se, virtual
ela observava catálogos
páginas abertas para uma expressão singular
uma repetição contínua
a obsessão e o jogo
amianto na cidade, sufoca e protege

pulmões, árvores condicionados
o destino não enxerga correspondência
uma cartomante entrega muiraquitã numa piscadela
lembro de Levi Strauss
as palavras dela são as primeiras apagadas
vício de linguagem, sobrevivência
esta carta deve ser enterrada
afirma
já nem sei quem fala
os funâmbulos em páginas
mensuraram questões pontuaram
voltava às prateleiras

não lembrava o nome do deus

 

 

 

***

 

 

 

eu era Ana
avesso Cesar
cigarros e bombas
pensei
imaginava estrelas
queria enxergar longe
tocar estações
galo e sol enredados
cartografar continentes
carregar questões
ruminar o vazio na barriga do rei
varar geleiras
adentrar a pele
colar a sombra
descabelada voar

 

Galvanda Galvão, videoartista, colagista, fotógrafa, professora e escritora do livro UMLANCEDEDENTES da Edições Do Escriba & uxi.cão, 2017, reedição, 2019 e AMENINAANOLIMOC da editora uxi. Cão, 2013. Sou pesquisadora do PPGARTES-UFPA em Cinema sob orientação do Prof. Dr. Orlando Maneschy.  Participo do Projeto plataforma Kaquiado do Preamar de Cultura e Arte da Fundação Cultural do Pará coordenado por Felipe Pamplona 2020.

 

 

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