Janela Poética III

Maitê Rosa Alegretti

 

Foto: Joice Kreiss

 

distender as próximas
vinte e quarto horas
para que os segundos
esparramem-se de forma
desigual em cada
músculo de carne
morta

 

 

 

***

 

 

 

Titubear é um modo de estar no mundo
quem titubeia passa a conhecer os desígnios da vida
por entre borras de café& quiromancia.

Os passos do ser vacilante são largos
gastos em seus solados inferiores
o torso sustenta-se bambeando seu equilíbrio pelas pontas dos pés.

E ao vacilar
a troca venosa – arterial
é suspendida
para aguardar
um lapso
de
lucidez.

 

 

 

***

 

 

 

Despe o guarda-roupa
atirando todas as
peças
ao chão

……..aparta as cores
……..distantes
……………….seleciona o que cai bem
……………….ao corpo
……………….esguio & pequeno
………………………….acelera sua pressa
………………………….de livrar
………………………….o móvel
………………………….abarrotado de
………………………….segundas-peles
………………………….casacos pouco
……………….usados
……………………falsas
……………………esperanças
……………………vontades
……………………suicidas &
……………………fé moída
…………………………Repara o chão
…………………………………..refém de tanta bagunça
…………………………………………..mas o espaço vazio
…………………………………………………..entre cabides
……………………………………………………………ainda é um caminho
………………………………………………………………………..a começar.

 

 

 

***

 

 

 

Você me acorda de manhã
dizendo que vai fazer o café
ainda com os cabelos desajeitados,
pergunta se eu não vou me levantar

a casa acorda ouvindo os seus passos
pequenas formiguinhas mordendo
o piso já em vias de ser trocado

a casa desliza pelas suas mãos,
um dia o armário da louça está no corredor
outro dia de volta à cozinha

Você me acorda dizendo que vai fazer frio
antes que eu dê por mim
cobre meu corpo esquio com as cobertas
jogadas no chão

no meio da tarde
estica as pernas para cima
se deita com a cabeça
voltada ao chão
vai descansar a seu modo

Você vai perceber o copo quebrado
debaixo da pia
vai protestar pela minha falta de atenção
vai dizer como se fosse pela primeira vez

“Pode juntar todos os cacos.”

 

 

 

***

 

 

 

no apartamento da frente
escuto os berros
de uma mulher chamando outra de burra,
os meus olhos saltam para a janela com os
fogos de artifício,
algum time ruim
ganhou aquele campeonato
de novo,
as pessoas gritam,
os pássaros
amontoando-se na árvore aqui do lado,
voam de cá pra lá,
desorientados
até mesmo os urubus lá das
antenas,
são quase sequestrados
do seu ritual pacato de vida
carnificina,
tento encontrar concentração
queria escrever um poema sobre
alguém que eu gostaria de conhecer
sem ser blasé, sem parecer algo estúpido
o calor deixa as minhas ideias misturadas com a temperatura
Alexa diz: são 29 nove graus
logo depois imagino você traçando uma linha nos cabelos
como se já os tivesse visto,
decido, então, escrever sobre você olhando para os próprios
cabelos

 

 

 

***

 

 

 

eu precisava aprender
que a mesma rua
já não guardava as pessoas de antes
e a cidade se deslocava todos os dias
centímetros abaixo de nós
antes de deixar de me locomover
a cruzar a linha férrea
capital – zona metropolitana
sabendo o impulso preciso a dar
entre o vão e a plataforma
eu precisava desfazer das armações
pequenas, descolorir metade
dos cabelos, amar mais uma vez
& salgar o asfalto
por onde passei.

 

Maitê Rosa Alegretti (1993) nasceu em Osasco, onde atualmente reside. É professora de italiano e mestranda em literatura italiana pela USP. Em 2017 foi finalista do prêmio Nascente/ USP na categoria poesia, contou com alguns poemas publicados na revista Ruído Manifesto, Mallamargens e A Bacana, também participou da antologia “Parem as máquinas” do Selo Off da Flip (2020). “Titubeio” seu primeiro livro foi publicado pela editora Urutau em junho de 2020.

 

 

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