Janela Poética III

Gabrielle Dal Molin

 

Ilustração: Paula de Aguiar

 

RUAS DA MEMÓRIA

 

silencio os estilhaços
das pequenas tragédias
semeando delícias
todos os dias
os homens criam apocalipses
enquanto procuro os parques da minha infância

 

 

 

***

 

 

 

CARNAVAL NO ABISMO

 

arisco feitiço

nosso tempo é desse silêncio
forte
feito o mar sem grito

é menor do que eu penso

arrisco chamar de amor
um carnaval nesse abismo

 

 

 

***

 

 

 

AMARGO

 

Alcançar a tristeza dos dias
Puxar a tristeza dos dias como um cobertor
Para cobrir o corpo talvez cansado
De estar exposto à alegria sem motivo
E a esse calor constante
É possível ser triste perto do Equador
É até comum
Embora finjam que o Carnaval nos livre
A liberdade e a tristeza se amam
É preciso se dar o direito de chorar
Muitos vivem presos na felicidade
Aquele riso colado entre os dentes
Colocar no café
a tristeza ao invés do açúcar
O amargo liberta a língua
de ter que ser feliz sempre

 

 

 

***

 

 

 

OS PÉS NA TERRA

 

minha avó anda firme com os pés na terra
na beira do rio
no silêncio do coração da mata
no peito que bate na mangueira
que abriga o espírito de uma grande mulher
ela se lembra
que seu pai rezava os bichos picados de cobra
e que ele salvou seu cachorro
meu bisavô que não sei o nome
tem minha bênção onde quer que esteja
minha tia que é mãe e avó e mãe duas vezes
lembra que meu avô
seu pai
lhe deu os nomes das árvores
quando pergunto ela me dá
o nome da candeia e da quaresminha
diz que vai lembrar o da flor amarela que agora não
consegue
confirma com sua mãe
minha avó
que seu pai sabia das plantas porque era reiseiro
minha avó
filha de rezador e mulher de rei
em suas veias
que hoje parecem coladas por cima da pele
já passaram folhas
filhos
vida e morte
seu cachorro ofendido pela cobra
por sorte foi salvo
e em meio a tantas outras
ela também não foi ofendida
mas perdoaria se fosse

 

 

 

***

 

 

 

ENTRE TUAS ÁGUAS

 

esse mar de navegar no escuro
é língua
sobre terra firme

 

 

 

***

 

 

 

MÃOS DE MÃE

 

entre as selvagens passagens do tempo
tenho notado que minhas mãos
estão ficando iguais às da minha mãe
as veias saltadas
herdadas da minha vó
os dedos grossos
tortuosos como caules do cerrado
as unhas maciças feito ardósia
— gatázios prontos para a vida —
entre os cabelos brancos das marias
tenho notado que minhas mães
de dentro e fora da matéria
têm os pés da cor da terra

 

Gabrielle Dal Molin nasceu em 1987, em São Paulo. Viveu no interior deste estado até se mudar para o Rio Grande do Norte. É professora de História, mestre em Antropologia e doula. Além de poemas, escreve sobre as vivências de ser mãe, bissexual e não monogâmica. Seu primeiro livro de poesia, “Seiva” (Ed. Multifoco) foi publicado em 2017 e o segundo, “Carnaval no Abismo”, acaba de ser publicado pela Munganga Edicões, contemplado pela Lei Aldir Blanc, através da Fundação José Augusto, do Governo do RN. 

 

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