Janela Poética III

Vitória Terra

 

Foto: Fátima Soll

 

NÁRKISSOS

 

Compacto
meu iceberg
de trevas
pesa

mão perversa
que estrangula
e cala
gestos
e intenções

vigília de cegos
paliada em véu
de altar
sou cativeiro
das respostas
engolidas

não há
sombras
lembranças de um sol posto
em mim não há
tocar meu breu
é sorver o abismo
possuir o charco

subverto
as palavras ácidas
pisando a madrugada madura
nesse lagar sem mosto
e pouco a pouco
seduzo-te ao Lago Baykal
e sem perceber desapareces
na minha água escura

 

 

 

***

 

 

 

TIME REALISE

 

Fico perplexa
ao ver a idade dos seus olhos
um menino
que escorrega
nos vincos da sua face
e quando você ri
mais bonito ele fica
e se esconde maroto
nos fios brancos
das suas barbas

ali onde a vida se revela
vulnerável
sapos coaxam
era um casal
de tucanos
você riu
do meu engano

 

 

 

***

 

 

 

ESTAÇÃO DO VALONGO

 

O trem que passa
às 2h
arrastando vagões
intermináveis
rangendo
no aço que some
em paralelo
por entre as serras
galopa como as tropas
de Quitaúna
e mais longe de mim
toca um trilo

comprido
anunciando que estou

muito só
dentro desse trem
errante
nem um mendigo
se esconde
sob o banco
nem um passageiro
curvado pela janela
se mistura na paisagem

nenhuma criança
corre aos gritos
de um corrimão a outro
ele singra
furando a noite
atravessando
minha madrugada
insone
desaparecendo
feito a fumaça
do charuto
de James Brunlees

nesses trilhos
que brilham mais
na grota
funda da infância
lembro com medo mesmo
é daqueles
dentes lunáticos
do vendedor
de coxinhas
rangendo e rindo
rangendo e rindo
rangendo e rindo

 


 

***

 

 

 

ÀS VEZES SOU

 
 ...............................................para Cecília Meireles

 

Às vezes sou céu dentro do mar
às vezes só mar na imensidão
nenhuma estrela
e o vento todo soprando em vão

houve um tempo em que meus cabelos
eram carinho nas minhas mãos
meus dias
desenhos soltos
faziam cócegas no meu pensar

hoje, avulta-se o fantasma da lembrança
passa a janela
e na terceira vigília
acordo pra sempre
do que fui

susto pulsações
busco uma despedida
um aceno
quando? pra onde?
e só o vento
só o vento soprando em vão

 

 

 

***

 

 

 

SOU TODAS AS PÁTRIAS

 

Sou todas as pátrias
as famintas e as que vomitam suas gorduras
sou a pele escura e brilhante
dos habitantes do Níger
e seus olhos vasculhando o lixo
sou a pele translúcida com veias azuis
dos que frequentam o Cassoulet Maison de Paris
e suas sobrancelhas de avelã
sou todas as almas partidas ou
ancoradas num porto qualquer
com suas mãos de aceno
com seus pés de chegada
sou as ancas ondulantes
das mulheres na calçada da Shotwell Street
e as mãos entrelaçadas na gratidão
dos milagres conferidos à retidão das súplicas
sou todas as pátrias
sou a terra arada lavrada e semeada
sou a chuva serôdia e a seca esturricante
o beijo úmido onde escorrega o desejo
e a palavra que corta sangra e o mata
sou um punhado de nadas

 

 

 

***

 

 

 

POMBA

 

Aninhada na boca do abismo
sem lona
sem porta, sem ferrolho
senhora dos quatro ventos

a mansidão do mundo
dorme nos seus olhos de semente
quando contempla a solitária crisálida
pendida sob o teto
da folha

espera imóvel
que guarda um tesouro
na aridez do penhasco
ovos de liberdade
quentes de constância e coragem

até que a luz da aurora
seja dia perfeito
e num instante etéreo
perca pra sempre
o que intrepidamente ajuntou

 

Vitória Terra nasceu em Maracajú, MS. É fundadora do Terra Franklin Advogados, especializada em filosofia do direito e em direito processual civil pela UFU, Master Business Administration pela FGV, atuando como advogada em todo o território nacional. Escritora e poeta, publicou “Não mais os falsos infinitos”, Ed. Patuá e, virtualmente, publica nas páginas Vitória Terra Poesia (Facebook), vitoria_terra_poesia (Instagram), além de revistas e jornais literários.

 

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